“Dentista é queimado dentro de consultório
Um dentista foi amarrado com fios de computador a uma cadeira, trancado no banheiro e queimado por dois homens em seu consultório em São José dos Campos (a 97 km de São Paulo).
Com 60% do corpo queimado, Alexandre Peçanha Gaddy, 41, estava internado ontem à noite em estado grave e com risco de morrer.
A polícia não descarta que os homens tenham se irritado porque Gaddy guardava pouco dinheiro no local e, por isso, tenham ateado fogo. Mas o motivo do crime, ocorrido por volta das 21h de anteontem, ainda é investigado (…)
O ataque de ontem é o segundo do tipo em um mês.
Em 25 de abril, ladrões atearam fogo na dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, 46, em São Bernardo do Campo. Ela morreu.
A polícia prendeu Jonatas Cassiano Araújo, 21, Thiago de Jesus Pereira, 25, Victor Miguel Souza Silva, 24, e um adolescente de 17 anos, dias após o crime”
A matéria diz que ainda não se sabe se a intenção dos criminosos era matar para roubar ou queriam apenas roubar e depois que roubaram, porque a vítima não tinha dinheiro suficiente, resolveram também queimá-la.
A diferença é sutil, mas importante do ponto de vista jurídico. Isso porque ela determina por qual crime os bandidos responderão: pela tentativa de latrocínio (roubo seguido ou precedido de morte) ou pelo roubo e (tentativa) de homicídio.
No latrocínio, o criminoso mata para assegurar a posse do produto do roubo ou para cometer o roubo em si. É o caso do bandido que atira para pegar a carteira da vítima ou do bandido que pega a carteira da vítima e depois atira para que ela não chame a polícia. Em ambas as hipóteses, a morte não é o objetivo do criminoso, ela é apenas um meio para atingir um fim: roubar.
Mas não é necessariamente isso o que aconteceu na matéria acima. A tentativa de matar a vítima possivelmente não está conectada ao roubo. Os bandidos roubaram e depois, como não estavam satisfeitos com o valor roubado, resolveram também matar. Ou seja, a morte foi um crime paralelo ao roubo, mas não um meio para facilitar o roubo. Aconteceram no mesmo lugar, mas não são duas partes de um único crime (que é o que caracteriza um latrocínio).
Quando a tentativa de matar é uma forma de facilitar o roubo ou assegurar a posse do que foi roubado, como a vítima não morreu (ao menos não até agora), o criminoso é condenado pela tentativa de latrocínio. Como a pena varia entre 20 e 30 anos, a pena pela tentativa varia entre 6 anos e 8 meses e 20 anos.
Já se a Justiça entender que houve um roubo e uma tentativa de homicídio qualificado, e resolver apenar as duas condutas de formas independente (o que os juristas chamam de concurso material), as penas seriam de roubo qualificado consumado (que vai de 4 anos a 13 anos e 4 meses) e tentativa de homicídio qualificado (que vai de 4 anos a 20 anos), o que no total, geraria uma pena total entre 8 anos e 40 anos, que é significativamente maior que a tentativa de latrocínio.
PS: Acima dissemos que se a Justiça decidir que a tentativa de matar foi para acobertar o roubo, será uma tentativa de latrocínio (em vez de latrocínio consumado). Isso porque a vítima não morreu. Por estranho que pareça, ainda que o latrocínio seja um crime contra o patrimônio, o que determina se é uma tentativa de latrocínio ou um latrocínio consumado é se a vítima morreu ou não; e não se o criminoso conseguiu roubar ou não. Isso acontece porque, como o legislador deixou de dizer como a lei deve ser interpretada pela Justiça, coube à Justiça fazê-lo, e ela normalmente se diferencia a consumação e a tentativa de latrocínio olhando se a vítima sobreviveu ou não, e não se o bem foi roubado ou não. Se ela tivesse tido uma interpretação diferente, um caso como o acima (no qual a vítima não morreu, mas o criminoso conseguiu fugir com o bem), a pena seria de um latrocínio consumado: entre 20 e 30 anos (em vez de tentativa de latrocínio, que, como dissemos, varia entre 6 anos e 8 meses e 20 anos).
Para complicar a situação, o silêncio do Congresso sobre o assunto possibilita que alguns juristas entenderem que situações como a descrita na matéria acima é um roubo qualificado por lesão corporal grave (cuja pena varia entre 7 e 15 anos). Ainda que tal interpretação possa soar absurda – afinal até animais irracionais sabem instintivamente que fogo é algo que pode matar –, no caso do índio Galdino a Justiça entendeu que os criminosos atearam fogo na vítima apenas para machucá-la. Segundo a Justiça, não assumiram o risco de matá-la e, por isso, não podiam ser condenados por homicídio.