“Faculdade é suspeita de jogar corpos fora
A polícia encontrou ontem 15 crânios, um corpo de uma criança sem cabeça, um corpo de um adulto sem pernas, fetos e um tonel com partes de corpos humanos enterrados no jardim da Universidade São Marcos, no Ipiranga.
Segundo o delegado Jorge Carrasco, do DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), a polícia chegou ao local após receber uma denúncia anônima (…)
Segundo Carrasco, um coordenador disse em depoimento que os corpos eram do curso de enfermagem e que, como o laboratório de anatomia precisava ser fechado, pediu para o zelador enterrá-los no jardim (…)
O delegado afirmou que a universidade deverá responder por ocultação de cadáver.
Segundo o professor de bioética da Faculdade de Medicina da USP Reinaldo Ayer, o procedimento da São Marcos difere dos adotados pelas instituições de ensino.
‘Normalmente, esses restos mortais doados para as universidades são enterrados em cemitérios ou cremados’"
Há alguns pontos interessantes aqui.
Primeiro, o delegado errou ao dizer que a universidade vai responder pelo crime de ocultação de cadáver. A universidade é uma pessoa jurídica. Pessoas jurídicas, exceto em questões ambientais, não cometem crimes no Brasil. Quem comete o crime é a pessoa física que trabalha para aquela pessoa jurídica. A pessoa jurídica pode ser responsabilizada civilmente (pagar para ressarcir o dano ou perda que causou), mas não criminalmente.
Mas vamos à ocultação de cadáver, que é um crime interessante. O Código Penal diz que é crime “destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele”. Partes de um corpo humano não é um cadáver. O cadáver é o resto mortal integral, inteiro. Ao menos integral em relação ao que era em vida. Logo, não é porque alguém não tinha as pernas quando era vivo que, ao morrer, ele não será um cadáver. Ainda que o corpo morto não estivesse completo, ele também não estava completo enquanto estava vivo. Compara-se em relação ao que ele era em vida. Isso é importante porque, a bem da verdade, olhando com cuidado todos temos alguma coisa faltando. Seja o cabelo, seja o órgão sexual do sexo oposto. Apenas a falta em algumas pessoas é mais visível do quem em outras.
Mas, se olharmos a matéria acima, ela cita corpos sem cabeças e cabeças sem corpos. Nem um, nem outro é cadáver porque não existe uma pessoa viva sem cabeça ou sem corpo. Mas nem só por isso esses restos mortais deixam de ter proteção: a lei diz ‘cadáver ou parte dele’.
Aliás, é por isso também que esse artigo não consegue proteger o feto abortado: como para a lei brasileira ele nunca teve vida, ele não é um cadáver. Cadáver é só aquilo que em algum momento viveu. Mas (e isso é de fato estranho), se o feto nasceu morto (natimorto), seus restos são protegidos como cadáver ainda que, tecnicamente, ele também jamais tenha vivido.
A segunda coisa interessante aqui é a palavra ‘ocultar’. Você provavelmente não conhece ninguém que mantenha um cadáver em casa ou no escritório. Isso porque sempre nos dispomos do cadáver de alguém. Quase sempre enterrando. Bem, se seu cachorro enterra um osso, ele está ocultando o osso. O mesmo acontece quando enterramos um cadáver. Ora, então quer dizer que quem enterrou seu ente querido cometeu uma ocultação de cadáver? Não! A ocultação à qual a lei se refere é a ocultação irregular. É o latrocida que esconde o corpo da vítima para dificultar a investigação do crime, por exemplo.
Na matéria acima, as partes cadavéricas só terão sido ocultadas se os restos mortais não foram enterrados de forma regular e se a intenção era esconder. Se era apenas dispor-se dos restos que já não seriam usados nas aulas da faculdade, não dá para falar que houve ocultação porque não houve a intenção de ocultar.
É justamente para evitar confusão que o Código Penal criou um outro crime logo a seguir: o vilipêndio ao cadáver: A lei diz que é crime “vilipendiar cadáver ou suas cinzas” Vilipendiar é ultrajar, desrespeitar. Por exemplo, cuspir ou xingar o cadáver ou jogar as cinzas na latrina.
Mas neste artigo há um outro problema: ele fala em cadáver e cinzas, mas não fala partes do cadáver. Logo, os corpos sem cabeça e as cabeças sem corpos da matéria acima não estão protegidas por este artigo. Eles estarão protegidos apenas se foram os profissionais da faculdade quem separaram corpos e cabeças e agora deixaram de recompô-los depois de serem usados para as aulas. A permissão para usar aqueles restos mortais era apenas com o intuito de educar. Enterrar no fundo da horta não é educar: ter ultrapassado os limites do que foi permitido é vilipendiar o cadáver. Mas se eles simplesmente receberam os pedaços de corpos, eles vilipendiaram apenas partes dos corpos, e não cadáveres. Logo, não podem ser punidos por esse crime.
O que fazer, então? Bem, nós enterramos cadáveres por dois motivos: primeiro, para escondê-los de nós mesmos. A ideia da morte para as sociedades ocidentais não é muito bem vinda e ninguém quer lembrar que sua hora em breve chegará. Mas a segunda razão é para nos proteger de doenças. No processo de coliquação (a decomposição do cadáver), é possível o surgimento de várias doenças, como tétano, hepatite A, tuberculose, febres tifóide e paratifóide e assim por diante. Bem, se enterramos pessoas fora do lugar adequado e sem respeitar os procedimentos prescritos pela lei, podemos ser culpados de um crime chamado Infração de medida sanitária preventiva, que consiste em "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".