“'Vá chafurdar no lixo', diz presidente do STF a repórter
O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, chamou ontem de ‘palhaço’ um repórter do jornal ‘O Estado de S. Paulo’ e recomendou que ele fosse ‘chafurdar no lixo’ (…)
O presidente do STF era aguardado por jornalistas ao sair da reunião do CNJ. Na primeira abordagem, ele interrompeu a pergunta iniciada pelo repórter Felipe Recondo e o destratou aos gritos.
O jornalista perguntou: ‘Presidente, como o senhor está vendo...’. Joaquim Barbosa não o deixou concluir e respondeu: ‘Não estou vendo nada. Me deixa em paz, rapaz. Vá chafurdar no lixo, como você faz sempre’.
O repórter, então, questionou: ‘Que é isso ministro, o que houve?’ Barbosa respondeu: ‘Estou pedindo, me deixe em paz. Já disse várias vezes ao senhor’. Recondo rebateu: ‘Tenho que fazer pergunta, que é o meu trabalho’.
Ainda mais irritado, Barbosa disse que não tinha nada a declarar. ‘Eu não tenho nada a lhe dizer, não quero nem saber do que o senhor está tratando’, afirmou (…)
Os jornalistas esperavam Barbosa para repercutir uma nota divulgada pelas três maiores entidades de juízes do país (AMB, Ajufe e Anamatra) no final de semana.
As entidades criticaram Barbosa por ele ter dito que a magistratura tem mentalidade pró-impunidade. Afirmaram que ele vive situação de ‘isolacionismo’ e ‘parte do pressuposto de ser o único detentor da verdade’”
Por irônico que seja, tirando tons e formas, ambos estão certos. Bom jornalista faz a pergunta ("estou fazendo apenas o meu trabalho"). Bom magistrado não responde ("me deixe em paz"). Essa é a regra do jogo, ainda que talvez pudessem ter usado um tom e uma forma menos agressiva, como o próprio magistrado reconheceu mais tarde.
Problema existe quando o jornalista é omisso, se acovarda perante o entrevistado, ou tem objetivos turvos. Ou quando o magistrado tem o ego maior que sua toga e acaba falando fora do processo. Bom juiz não dá entrevista. Bom reporter tenta entrevistá-lo assim mesmo.
Mas o debate ao redor do confronto realça um problema comum em regimes pouco democráticos: a discussão acaba focada não no que é dito, mas em quem diz.
Se alguém ‘do outro lado’ diz algo, sua afirmação está automaticamente errada ou sua pergunta automaticamente invalidada. Não porque o que foi dito está errado – sequer chega-se a fazer a análise do conteúdo – mas porque quem diz ‘não tem o direito de dizer’.
Chico Buarque, durante a ditadura militar, teve inúmeras obras censuradas não por causa do que era dito – muitas vezes os censores sequer entendiam o seu conteúdo – mas porque era o Chico Buarque. Daí porque às vezes apresentava-se como Julinho da Adelaide. Com o pseudônimo, suas obras enfrentavam menos resistência dos censores.
E os nazistas perderam a oportunidade de desenvolverem a bomba atômica antes dos EUA não porque não tivessem capacidade. Einstein era alemão. Mas como ele era também judeu, os nazistas não deram à sua teoria o crédito devido.
Em ditaduras, se alguém que desconhecemos diz algo do qual não gostamos, não atacamos o que foi dito: focamos o debate em quem disse. ‘Ele só pode ser de oposição pois defende tal ponto de vista’.
Folha de S.Paulo é de oposição, Rede Globo é de oposição, Estadão é de oposição, o chefe é de oposição, o padre é de oposição e assim vai. Qualquer pessoa que se atreva a dizer que o rei está nu só pode ser de oposição. E, por incrível que seja, os mesmos veículos e indivíduos são acusados de serem de oposição por partidos opostos.
O fato é que não é a imprensa que é de oposição: a imprensa apenas faz aquilo que qualquer boa imprensa em qualquer democracia deve fazer: fuçar naquilo que não se quer debater, fazer as perguntas que precisam ser respondidas, evidenciar aquilo que se quer esconder. Se quem errou é desse ou daquele partido, não lhe deve importar. O que deve importar é o conteúdo. O problema existe justamente quando o oposto ocorre: quando ela não põe o dedo na ferida.
Há uma regrinha simples para distinguirmos rapidamente um debate democrático de um debate maniqueísta: se o debate foca no conteúdo do que é debatido, ele tende a ser democrático. Se ele foca na forma, ele tende a ficar maniqueísta. O primeiro, foca no mérito da questão; o segundo, no mérito de quem fala, no mérito de como é falado, etc.
Um exemplo comum: os famosos ‘você sabe com quem está falando?’ ou ‘eu sou chefe disso’ ou ‘eu sou formado naquilo’ ou ‘eu trabalho em tal lugar’ são muletas que tentam dar credibilidade ao conteúdo do discurso baseado apenas na presumida credibilidade de quem fala. O problema é que, ainda que quem fale de fato tenha alguma credibilidade (e nem sempre tem), a credibilidade de quem fala e a credibilidade do que é falado são coisas distintas.
Ao afirmar que você é algo, você afirma que sua opinião deve prevalecer não porque ela seja melhor formulada ou seja validada pelas evidências, mas porque você é mais importante. O outro lado deve aceitar seu argumento não por ele ser racional, mas pela força de quem argumenta.
Em termos democráticos, se uma parcela significativa – mas não necessariamente majoritária – da sociedade aceita e adota essa linha de argumentação, caímos em uma ditadura ou nos aproximamos perigosamente dela, onde o que vale não é o que é dito, mas quem diz.
Passamos a ter leis aprovadas não porque elas geram bons resultados, mas porque quem apresentou o projeto é um aliado político (e rejeitamos bons projetos apenas por terem sido apresentados por oponentes). Réus são condenados ou absolvidos não por causa das evidências, mas porque são amigos ou inimigos, belos ou feios, ricos ou pobres. O governo toma essa ou aquele decisão para favorecer apadrinhados e não porque seja o melhor para a sociedade. E eleitores votam em X ou Y não porque suas propostas fazem sentido, mas porque são desse ou daquele partido. A democracia como um todo sai perdendo.