Se a polícia diz que houve 4 mil homicídios no Estado, provavelmente isso ocorreu. Mas isso não quer dizer que essas pessoas tenham sido mortas nas cidades onde seus corpos foram encontrados ou onde o boletim de ocorrência foi feito.
Digamos que Zezinho mate Luizinho na cidade A, coloque-o em seu carro e abandone o corpo no Vilarejo B. A morte aconteceu em uma cidade mas o corpo foi encontrado em outra. A polícia não sabe – até o fim das investigações, e apenas se essas investigações encontrarem os culpados verdadeiros – onde o crime ocorreu. Ela sabe onde o corpo foi encontrado.
Logo, se o Vilarejo B é um local mais fácil de ‘desovar’ os corpos, ele estará ‘importando’ corpos e seus números estarão inflados; enquanto a Cidade A, onde a morte de fato ocorreu, estará ‘exportando’ corpos e seus números estarão subestimados.
Mas o problema não para aí. O corpo foi achado no Vilarejo B. Mas se o Vilarejo B está dentro da comarca da Cidade C, a ocorrência pode ser registrada na Cidade C e não no Vilarejo B. Logo, os números da Cidade C podem estar também sendo inflados.
É bem verdade que esse é um problema menos grave em estados mais densamente povoados, como São Paulo e Rio, onde quase toda cidade é uma comarca, mas ainda é relevante em estados maiores, como Minas e Amazonas, ou menos povoados, como Acre ou Roraima, onde uma mesma comarcar cuida de dezenas de cidades.
Vamos complicar mais um pouco?
Digamos que o delegado da Cidade C saiba desses problemas e registre os homicídios de acordo com a cidade em que o corpo foi achado e não na sede da comarca. Mas se os delegados das outras comarcas não fizerem o mesmo, os números da Comarca C ficarão distorcidos para baixo em relação às demais comarcas. Se todos os delegados agirem de forma consistente, podemos comparar os números. Se não forem consistentes em como registram os crimes, acabaremos comparando laranjas com bananas.
Um outro exemplo: digamos que o delegado da Cidade C, responsável pela investigação, seja muito eficiente e descubra onde os crimes de fato ocorreram e que tão logo tenha feito essa descoberta, reajuste os números para refletirem a verdade. Mas se o delegado da Cidade D for menos eficiente, a Cidade D poderá ficar com números inflacionados não porque lá aconteçam mais homicídio, mas porque os crimes registrados lá ficam sem solução. Novamente, estaremos comparando bananas e laranjas.
Uma outra forma de distorcer as estatísticas: os policiais encontram o corpo do seu lado da divisa entre os municípios mas, para que seus índices de criminalidade não piorem (ou simplesmente para evitarem ter de investigar), eles levam o corpo para o município ao lado e deixa com que o corpo passe a ser problema de outra delegacia.
Mais uma forma de distorcer as estatísticas: o crime foi cometido na Cidade X, investigado na Cidade X e posto nas estatísticas da Cidade X. Correto, certo? Não necessariamente. Pode ser que tanto o criminoso quanto a vítima vivam na Cidade M e que o motivo que levou à briga tenha ocorrido na Cidade M, mas o criminoso levou a vítima para ser morta na Cidade X porque lá há locais mais ermos, há menos iluminação pública ou simplesmente porque ele conhece melhor a região. A causa da morte (onde o tiro ocorreu) está na Cidade X, mas todos os motivos estão na Cidade M e não têm nada a ver com a Cidade X.
E ainda mais uma forma de distorcer: a vítima foi vista sendo levada pelos traficantes. Ela nunca mais foi vista e nem seu corpo foi encontrado. Alguns delegados podem registrar o fato como um caso de desaparecimento/sequestro, e outros como um caso de provável homicídio. O primeiro caso não apareceria nas estatísticas de homicídio; mas o segundo, sim.
Como resolver? O ideal é que cada morto diga onde morreu, mas como isso não é possível, que cada criminoso diga onde matou. Mas isso também não irá acontecer. Então ficamos com soluções paliativas, como estabelecer regras como a de que todo o homicídio seja registrado na cidade ou vilarejo onde o corpo foi encontrado, e não na comarca e, tão logo se descubra onde o crime ocorreu, que os números sejam realinhados. Mas, para isso, precisamos não só de um sistema que funcione em todo o Estado e que todos os policiais saibam utiliza-lo corretamente, mas que ele funcione em todo o país, já que o corpo pode ser ‘desovado’ em um estado diferente daquele onde o crime foi cometido.
Já nos crimes como roubo e furto esse problema é menos grave porque a vítima está viva para dizer onde o crime ocorreu. Mas isso quer dizer que os números de roubo e furto são mais confiáveis?
Não. Pelo contrário: os números são menos confiáveis. Isso porque enquanto raramente um homicídio vai deixar de ser comunicado à polícia, nos crimes contra o patrimônio muitas vítimas deixam de comunicar a ocorrência. Logo, os números ficam menores do que deveriam.
E, para piorar, as cidades com polícias menos competentes podem ser as que apresentam os melhores números. Isso porque se você confia no trabalho da polícia, você provavelmente irá informa-la de que seu carro foi furtado porque você tem esperança de que ele será achado. Mas se você não confia, você não irá perder seu tempo com isso. Já vimos aqui, inclusive, o caso do delegado que proibiu que as pessoas comunicassem crimes à polícia para ‘diminuir’ o índice de criminalidade do município