“Arcebispo afirma que aborto é mais grave que estupro
Dom José defende não excomungar o padrasto da menina de nove anos, que a estuprou
Ele afirmou que Lula é um católico "mais ou menos" por ter criticado a decisão de excomungar mãe e médicos responsáveis pelo aborto
O arcebispo de Olinda e Recife (PE), dom José Cardoso Sobrinho, disse ontem que o aborto é um crime mais grave que o estupro ao defender a excomunhão da mãe e dos médicos responsáveis pela interrupção da gravidez de uma menina de nove anos e não a do padrasto da garota, que admitiu tê-la estuprado. Ele ainda afirmou que o presidente Lula, que condenou a decisão da igreja, é um "católico mais ou menos".”
Não vou entrar no debate religioso, mas é um bom gancho para explicar que a lei canônica (a lei da igreja católica romana) não é usada pelo governo brasileiro.
O Código Penal, que é a lei aplicável no Brasil, agrega os crimes em grandes grupos (ou “títulos”). Esses títulos dizem respeito à vítima. Por exemplo, o Título I contem os crimes contra a pessoa; o Título II, os crimes contra o patrimônio; o Título III contem os crimes contra a propriedade imaterial, etc. Os títulos são, por sua vez, divididos em capítulos. Por exemplo, os crimes contra a vida são agrupados em crimes contra a pessoa, contra a honra, contra liberdade individual, etc. No caso especifico dos crimes contra a liberdade individual, o legislador resolver dividi-los ainda mais, e criou seções. Logo, ameaçar alguém (art. 147) é um dos crimes contra a liberdade pessoal, que é uma seção dos crimes contra a liberdade individual, que por sua vez é um capítulo dos crimes contra a vida.
A primeira impressão que temos é a de que os títulos, capítulos e seções estão ordenados em ordem de importância. O homicídio (art. 121), é um crime contra a pessoa, que faz parte do Título dos crimes contra a vida. Ele, que vem antes de todos os outros crimes, com certeza, é mais grave do que o furto, que faz parte dos crimes contra o patrimônio. Logo, os crimes mais importantes vêm na frente, correto? Não!
A gravidade de um crime não está na ordem em que ele aparece no Código Penal, mas no quanto de pena que ele acarreta, se ele é apenado com reclusão (mais grave) ou detenção (menos grave) e se ele é hediondo ou não.
Exemplos: O furto (art. 154) é um crime muito menos grave do que o roubo (art. 157), embora este venha depois daquele no Códido Penal. O primeiro acarreta pena de reclusão de 1 a 4 anos. O segundo, pena de reclusão de 4 a 10 anos. Outro exemplo? O latrocínio (roubo seguido ou precedido de morte), que é um dos crimes contra o patrimônio e mora dentro do capítulo “Roubo e extorsão”, é muito mais grave do que o homicídio simples, que é um crime contra a pessoa e, portanto, contra a vida. A pena do latrocínio varia entre 20 e 30 anos de reclusão. A do homicídio varia entre 6 e 20 anos de reclusão.
E o que isso tem a ver com o aborto da matéria?
O aborto é um crime contra a vida (ou para ser mais preciso, contra a expectativa de vida do feto), e mora no capítulo dos crimes contra a pessoa. Já o estupro é um crime contra os costumes e mora no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual. Mas o fato de o aborto ser um crime contra a vida e o estupro ser um crime contra os costumes não faz aquele ser mais grave do que esse, segundo a lei brasileira. Pelo contrário. O crime de aborto é punido com detenção de 1 a 3 anos para a gestante que o provoca ou permite/pede para que ele ocorra, e reclusão de 1 a 4 anos para quem o provoca com o consentimento da gestante. Já o estupro possui uma pena de reclusão de 6 a 10 anos.
Mais um detalhe: como no caso acima a gravidez foi resultado de um estupro, o aborto sequer é um delito para a lei brasileira, ou seja, não há pena alguma; enquanto o estupro, por ter sido cometido pelo padrasto, tem a pena aumentada pela metade, ou seja, a pena fica entre 9 e 15 anos.