“Para 65%, mulher com roupa curta merece ataque
A maior parte dos brasileiros (65,1%) concorda, de forma total ou parcial, que ‘mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas’. A maioria (58,5%) também diz acreditar que, ‘se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros’ (…)
Os resultados são de pesquisa divulgada ontem pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Os dados foram obtidos a partir de entrevistas com 3.810 pessoas de ambos os sexos entre maio e junho de 2013.
Os entrevistados foram apresentados a uma lista de afirmações e questionados sobre se concordavam com elas ou não - total ou parcialmente. A margem de erro é de cinco pontos percentuais (…)
Em relação à frase sobre o uso de roupas curtas, que tem a concordância total de 42,7% e parcial de 22,4%, o detalhamento do perfil dos entrevistados mostra que quanto maior o nível educacional, menor a aceitação.”
65% são dois em cada três respondentes. Em uma família com mãe, pai, irmão e irmã, ao menos dois dos quatro acreditam que se a mãe ou irmã usarem roupas que mostram o corpo, elas merecem ser estupradas. Ou se você tem três amigos, dois acreditam que você merece ser estuprada se usar roupas que expõem o corpo.
A consequência desse raciocínio é que, se eu acho que alguém merece ser estuprada por conta da roupa que usa, eu acho que a lei não é adequada. Afinal, nossa lei pune o estuprador e não ‘quem estava vestida pedindo para ser estuprada’.
Se eu acho que uma lei não é adequada, eu me vejo como alguém com o ‘direito’ de violá-la. Em outras palavras, me vejo no direito de estuprar a mulher que usa roupas que deixam o corpo exposto.
Essa é a mesma atitude que nos leva a dirigir acima do limite de velocidade ou a usar drogas ilícitas: a lei não reflete o que acredito ser justo, logo a desrespeito. Ou, no mínimo, estou disposto a desrespeitá-la e aceitar que outros a desrespeitem impunemente.
O outro detalhe importante é que essa objetificação é da mulher e não do corpo nu. Afinal, não achamos que homem sem camisa merece ser estuprado.
E aqui vale refletir sobre nossa difícil relação com o corpo feminino.
Não é só em questões polêmicas, como o aborto, que nos leva a acreditar que o corpo feminino deve ser submetido às nossas crenças religiosas, mas também em questões que deveriam ser, em teoria, bem menos polêmicas, como a obscenidade.
Não perdemos tempo discutindo se um homem sem camisa está agindo obscenamente. Mas uma mulher sem camisa ou sutiã, ainda que na praia, gera olhares de desejo, narizes torcidos, fotógrafo indesejados e infindáveis debates se é ou não obsceno. Mesmo o ato de amamentar em público causa olhares, polêmica e debate.
Afinal, o problema está na pouca roupa e no corpo nu, ou ele está é no nosso desejo mal resolvido? Achamos que as mulheres não devem mostrar o corpo por que ele fere nossa moral ou por que não resolvemos nossa própria sexualidade e carência afetiva?
Infelizmente, leis penais não são capazes de moldar comportamento. Elas podem, quando muito, coibir e punir comportamentos desviantes, mas elas não mudam nossas crenças.
A longo prazo, nenhuma sociedade consegue bancar o custo de usar leis penais para tentar coibir e punir comportamentos desviantes em grande escala, como os 65% na reportagem acima. Se queremos resolver a violência contra a mulher, precisamos moldar nossa relação com o corpo feminino e com nosso próprio desejo.