“A Corregedoria da Polícia Civil arquivou o inquérito que investigava dois delegados suspeitos de abuso de autoridade na prisão de uma escrivã, no 25º DP, no bairro de Parelheiros (zona sul).
Conforme a denúncia, os policiais Eduardo Henrique de Carvalho Filho e Gustavo Henrique Gonçalves, ambos da Corregedoria, tiraram a calça e a calcinha da escrivã.
Ela era investigada sob suspeita de receber propina.
Um vídeo divulgado pelo blog do jornalista Fábio Pannunzio mostra que, na prisão em flagrante, os delegados determinaram que ela tirasse a roupa para checar se havia escondido dinheiro de propina na calcinha.
O caso aconteceu em junho de 2009. Os policiais retiram a calça e a calcinha dela e encontram R$ 200. ‘Foi um excesso desnecessário. Ela não queria passar pelo constrangimento de ficar nua na frente de homens’, diz o advogado Fábio Guedes.
A escrivã foi expulsa da polícia em outubro de 2010. Ela já foi libertada e seus advogados recorreram da decisão que a exonerou.
Para a corregedora Maria Inês Trefiglio, a ação respeitou o limite do poder de polícia. Ela diz que a divulgação tem motivação política.
Ouvido no inquérito que investigou os policiais, o promotor Everton Zanella disse que a retirada da roupa foi uma consequência do transcorrer da operação.
A Folha não encontrou os delegados investigados”
O vídeo – que contem imagens fortes e de nudez, e pode ser ofensivo a algumas pessoas – está abaixo.
Por um lado, temos uma pessoa suspeita de ter recebido propina e a escondido em sua roupa íntima, e de outro lado temos a Constituição dizendo que essa mesma pessoa tem direito à privacidade, dignidade e tratamento digno. É o direito do Estado de investigar contra o direito da(o) suspeita(o) de ter sua intimidade, privacidade e dignidade protegidas. Qual deve prevalecer? Com um pouco de bom senso, ambos.
Reparem que, no caso da matéria acima, a suspeita disse várias vezes que não se opunha à revista íntima, mas que se opunha apenas à revista íntima conduzida por homens. Ela sequer precisava ter dito isso. Esse é um direito de qualquer suspeito. Bastava mantê-la onde estava e chamar algumas policias femininas para conduzir a mesma revista que foi conduzida por homens. É justamente por isso que vemos tantos policias de sexos opostos fazendo ronda juntos. Da mesma forma que uma mulher não será revistada por um homem, um homem não será revistado por uma mulher. Ao contrário do que foi dito pelo policial na gravação, ele não era o único que poderia ter feito o flagrante. Na verdade, qualquer pessoa - policial ou não - pode prender em flagrante alguém que esteja cometendo um crime.
E se não houver um policial do mesmo sexo do(a) suspeito(a) por perto para fazer a revista? Mantêm-se a suspeita (ou o suspeito) sob vigilância até que a(o) policial do mesmo sexo da vítima chegue. Obviamente, se demorar muito, a detenção passa a ser abusiva e a pessoa deve ser liberada, já que o suspeito não pode ter seus direitos tolhidos por uma falha do Estado.
Nosso Código de Processo Penal diz que "a busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência" (art 249). Reparem que a lei possibilita, na parte final, a revista de uma mulher por um homem, mas ela está se referindo à revista comum e não à intima. Caso contrário, qualquer policial poderia parar qualquer mulher na rua e obrigá-la a ficar nua sob o pretexto de estar investigando algo. Além disso, o mesmo artigo deixa subentendido que, para um homem revistar uma mulher, é necessário que essa revista seja essencial para que a diligência não seja retardada. Se pode-se esperar a chegada de uma policial feminina, não há razão para a revista ser feita por um homem. No caso acima, a pessoa já estava detida e poderia-se esperar a chegada de policiais feminas sem qualquer prejuízo.
É obrigação do Estado prover os mecanismos de proteção ao suspeito. Se ele não mantêm tais mecanismos de proteção, o problema é dele - Estado -, e não do suspeito. Essa é a mesma lógica que leva, por exemplo, uma pessoa a receber a liberdade condicional em um lugar onde não é possível cumprir pena em regime aberto: a pessoa tinha direito à progressão de regime. O Estado falhou em construir uma casa de albergados onde ela pudesse cumprir pena em regime aberto. O que fazer? Mantê-la presa em regime semi-aberto? Não. Concede-se algo que seja tão ou mais benéfico do que o regime aberto: no caso, a liberdade condicional, na qual a pessoal sequer volta à noite para a casa de albergados. E essa é também a mesma lógica que proíbe o uso de escutas ilegais ou provas obtidas sob tortura: o Estado não pode violar a Constituição para fazer cumprir a lei.
Por fim, reparem que no vídeo o policial diz que se ela não tirasse a roupa ela seria presa por resistência. Errado. Para que haja o crime de resistência é necessário que a ordem dada pela autoridade seja legal. Ninguém é obrigado a cumprir uma ordem ilegal. E uma ordem de despir-se frente ao sexo oposto – não importa quão grave tenha sido o delito – é sempre ilegal. Um policial que extrapola seu direito de coerção está cometendo o que chamamos de abuso de autoridade. É o que diz o artigo 4º da lei 4.898/65: "Constitui também abuso de autoridade: (...) b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei".
PS: O fato de os policias terem sido absolvidos em um inquérito administrativo ou de o inquérito ter sido arquivado não quer dizer que eles não possam ser processados penalmente (pela promotoria) e civilmente (pela vítima/suspeita). E a condenação judicial sempre prevalece sobre a decisão administrativa.