“Fraude ocorre há 14 anos, diz ex-mulher de auditor
O esquema de fraudes na cobrança de ISS (Imposto Sobre Serviços) na Prefeitura de São Paulo começou há 14 anos, afirmou ontem a testemunha Vanessa Caroline Ferreira, ex-mulher do auditor fiscal Luis Alexandre Cardoso de Magalhães.
Ela prestou depoimento de cinco horas ao Ministério Público para dar mais detalhes de como funcionava a máfia do ISS, que pode ter causado rombo de R$ 500 milhões nos cofres públicos. Os promotores vinham investigando o sistema de propina a partir de 2005 (...)
‘O esquema de corrupção --o que o Luis contou para mim-- vem desde quando ele entrou na prefeitura. Tem no mínimo 14 anos. Quando ele ingressou, aprendeu o achaque. Não era um crime organizado, que nem [depois, quando] eles formaram a quadrilha’, afirmou.”
Por incrível que possa parecer para a maior parte das pessoas, não é crime não denunciar um crime. Como no caso da reportagem acima, você pode estar ciente da existência de um crime e se omitir por anos ou mesmo décadas sem que o Estado possa puni-lo.
Isso porque a omissão não é um crime. A lei não nos obriga a sermos bons cidadãos. Para a lei brasileira, essa é uma decisão de foro pessoal e moral.
A regra é que se alguém quer se omitir e deixar que a vítima continue sofrendo os danos do crime, a lei penal não tem poderes para punir o omisso.
Nosso Código Penal diz que a omissão só passa a ser relevante, e por isso punível, quando a pessoa devia e podia agir. As duas palavras – dever e poder – são importantes.
A lei restringe o dever de agir a apenas três situações/grupos de pessoas:
A primeira é quando a pessoa tem, por lei, obrigação de cuidar, proteger ou vigiar. É o caso da mãe em relação ao filho, do carcereiro em relação ao preso, e do médico em relação paciente.
A segunda é quando a pessoa assume a responsabilidade de impedir o resultado. É o caso de alguém que está tentando prestar socorro e acaba piorando a situação da vítima.
A terceira é quando o comportamento anterior da pessoa cria o risco da ocorrência do resultado. É o caso do motorista que resolve disputar corrida na avenida e acaba atropelando alguém ou ferindo seu passageiro. Seu comportamento anterior (dirigir perigosamente) criou o risco de que o acidente ocorresse.
Mas não basta que haja um desses três deveres de agir. É necessário que seja possível agir.
E o possível, aqui, deve ser lido como ‘em circunstâncias normais’ porque, em circunstância anormais, quase tudo é possível.
O médico responsável pelo paciente não é responsável pela morte daquele paciente se ele, médico, fez tudo que estava a seu alcance. Se o hospital não tinha o equipamento adequado, se o médico estava cuidando de outro paciente também em situação crítica, ou se o paciente atrasou o início do tratamento, o médico não pode ser responsabilizado porque não era possível fazer mais do que ele fez. Óbvio que o médico poderia ter saído correndo pelas ruas batendo de porta em porta perguntando se alguém tinha em casa o equipamento que o hospital não tinha. Mas isso não é uma ‘circunstância normal’.
Da mesma forma, a mãe que vê o leão avançando contra o filho pode pular na frente e deixar-se ser atacada pelo animal para proteger a criança, mas isso não seria uma circunstância normal.
Por outro lado, o mãe que sabe que seu esposo bate na criança se torna responsável por sua omissão porque ela tem a obrigação de cuidar da criança e pode fazer algo para protegê-la contra a violência do pai, como chamar a polícia.
O ‘poder agir’ é subjetivo. Cabe ao magistrado, analisando a situação do caso, julgar se poderíamos esperar que aquela pessoa agisse para proteger a vítima ou impedir o crime.
No caso da reportagem acima, era fácil a agora ex-esposa ter agido. Bastaria um telefonema, uma carta ou uma reunião com policiais ou Ministério Público. Mas como ela não tinha a obrigação de agir (ela não entra em nenhum dos três grupos explicados acima), sua omissão é penalmente irrelevante.