“Leitura da Bíblia em sessão da Câmara termina com expulsão
A leitura de um trecho da Bíblia dentro da Câmara Municipal de Piracicaba (a 160 km de São Paulo) deu início a uma discussão que terminou com um homem expulso por guardas municipais na noite de anteontem.
O vídeo da sessão mostra quando o presidente da Câmara, João Manuel dos Santos (PTB), inicia os trabalhos e pede que todos fiquem de pé para a leitura e nota que Regis Montero, funcionário do Ministério Público Federal, permanece sentado. ‘Eu gostaria que o cidadão, não querendo ficar de pé, por favor, se retire’, afirma Santos. Montero permanece sentado, e os guardas se aproximam para retirá-lo.
Segundo a Câmara, a expulsão ocorreu porque Montero ofendeu servidores, o que não é possível confirmar pelo vídeo”.
Vamos imaginar que os fatos narrados tenham de fato ocorrido como descritos.
Os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), bem como o desacato, a desobediência e a resistência (que são crimes contra a administração pública), só existem se o ofendido não deu causa à ofensa e a ordem recebida do servidor público era legal.
Por exemplo, se alguém é chamado de ‘negão’ e responde ‘branquelo’, quem respondeu não cometeu injúria porque foi ofendido primeiro. E se o servidor público diz para alguém na fila ‘fica na fila, preguiçoso’, quem responde ‘eu estou na fila, guarda vagabundo’ não está cometendo desacato porque o servidor é quem iniciou a ofensa.
Qualquer pessoa pode assistir uma sessão de votação em qualquer casa do Legislativo federal, estadual ou municipal, exceto quando ela é secreta (o que raramente é o caso, e certamente não era o caso na matéria acima).
Além disso, nossa Constituição diz que o Estado é laico. Isso significa não apenas que não há uma religião oficial. Significa também que o Estado não deve ser religioso.
A diferença é sutil, mas existe. Se apenas não houvesse uma religião oficial, o Estado poderia ainda assim celebrar várias religiões. Ou seja, ele poderia ser plurireligioso. Mas isso vai contra os direitos de um outro grupo: os ateus.
Daí por que não há (ou não deve haver) aulas de ensino religioso em escolas públicas. Não é uma questão de disponibilizar vários professores de religiões diferentes para que os alunos possam escolher. Ainda estaríamos impondo alguma religião àqueles que não acreditam em algo.
Logo, o simples fato de o presidente da Câmara resolver iniciar os trabalhos do Legislativo com uma cerimônia religiosa já é algo juridicamente questionável.
Mas ainda que – em uma ginástica intelectual – aceitemos o argumento que isso faz parte da expressão cultural do município (esse é o argumento para os crucifixos nas paredes de repartições públicas), tentar impor a aceitação do rito religioso a alguém da audiência é puramente ilegal. É a mesma coisa que dizer que a música funk é parte da expressão cultural do municipio, tocá-la antes de cada sessão da Câmara, e obrigar quem foi assistir a sessão a dançar no ritmo da música. Ainda que se aceite a primeira parte do argumento (de que é parte da cultura local), a segunda parte é inquestionavelmente ilegal.
Como a segunda parte é ilegal, se o presidente da Câmara o ordenou a ficar de pé ou sair, ambas as alternativas são ilegais. Logo, ele recusar-se a obedecer tal ordem não é crime de desobediência. E se ele ofendeu os guardas quando eles tentaram cumprir a ordem ilegal do presidente da Câmara, ele tampouco cometeu o desacato. Isso porque, em ambos os casos, a ilegalidade foi iniciada pelo servidor público. Tudo que a vítima fez foi reagir à ilegalidade da ordem dentro daquilo que seria razoável (se ele tivesse atirado nos guardas, isso já não seria razoável).
Há mais dois detalhes importantes que complicam a posição do servidor público na matéria acima. Primeiro, dar uma ordem ilegal é abuso de autoridade, o que é crime. A ordem do presidente feriu tanto a liberdade de locomoção (ele forçou a vítima a sair) quanto de crença e consciência da vítima. Segundo, se ele mentiu ao dizer que a vítima desacatou os guardas, ele terá cometido o crime de calúnia, já que terá imputado falsamente à vítima um crime (o desacato) que ela não cometeu.