“Com balas de borracha e bombas de efeito moral, a Polícia Militar perseguiu por 3 km cerca de 700 manifestantes da Marcha da Maconha ontem à tarde em São Paulo.
A avenida Paulista e a rua da Consolação foram tomadas pelos manifestantes, pela PM e pela fumaça das bombas, que irrita os olhos e faz arder pele e garganta.
O trânsito parou nas duas vias, no sentido centro.
Seis pessoas foram detidas e ao menos duas se feriram. Os detidos foram liberados no início da noite.
A marcha estava proibida por ordem judicial, dada anteontem. Às 14h, o grupo se concentrou no vão livre do Masp, decidido a marchar pela ‘liberdade de expressão’. ‘Ei, polícia, maconha é uma delícia’, diziam.
A PM tentava mantê-los confinados no vão.
Ao lado, 20 membros da Resistência Nacionalista (auto-intitulada ‘Extrema Direita Nacionalista do Brasil’) chamavam os manifestantes de ‘maconheiros’.
Em formação militar, eles recebiam ordens de dois homens engravatados - um deles com a cruz de ferro nazista tatuada nas mãos.
A confusão com a PM começou quando a polícia deteve um manifestante pró-maconha. Parte do grupo invadiu a Paulista - a Tropa de Choque, com escudos, capacetes e escopetas, os seguiu. Xingada por estudantes, a Tropa de Choque só parou na praça Roosevelt, quando a marcha já era bem menor.
No local, a PM atribuía a ação à necessidade de cumprir ordem judicial. Oficialmente, a corporação disse que a reação se deveu à iminência de briga entre manifestantes e ‘skinheads’”.
Ao contrário do que muita gente acha, o uso de drogas – inclusive maconha – é crime no Brasil, sim. O que mudou foi que os usuários já não são presos, mas submetidos a outros tipos de penas e tratamentos. Sem entrar no mérito da discussão e da conduta da polícia nesse case específico, podemos aprender três coisas com essa matéria:
1 - A primeira, é por que o juiz proibiu a manifestação. Não é só o uso de maconha que é crime: fazer a apologia também é um crime. Está no §2o do artigo 33 da Lei 11.343/06. Ele diz que é crime apenado com até 3 anos de detenção “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”. Uma manifestação sob o mote de ‘maconha é uma delícia’ pode, sim, ser enquadrada como uma forma de indução ou instigação. Basta que quem ouça seja induzido ou instigado a usá-la.
Mas, mesmo que não se enquadre nesse delito, pode enquadrar-se em outro: o de apologia criminosa, previsto no artigo 287 de nosso Código Penal. Ele diz que é crime “fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”. Diferente do primeiro artigo mencionado, quem ouve a apologia não se sente instigado ou é induzido a cometer o delito. Ou seja, não é necessário um efeito em quem ouve, basta que o autor do crime tenha falado (ou feito a apologia de qualquer outra forma, como com desenhos, videos etc) de um fato criminoso.
2 - Segundo, como a matéria explica, há um conflito entre a vedação à instigação/apologia e o direito à liberdade de expressão. Isso depende, na prática, da interpretação e formação pessoal de cada magistrado. Tanto a proibição à indução/instigação quanto à apologia envolvem uma restrição à liberdade de expressão das pessoas. Cada magistrado vai tender para um lado ou para o outro: alguns vão proteger mais a liberdade de expressão, outros vão dar mais ênfase à questão criminal. Mas, não é essa a segunda lição que podemos aprender aqui.
A segunda lição é que nenhum magistrado, por mais inteligente que seja, pode prever o futuro. Reparem que a ordem judicial foi dada um dia antes da manifestação. Como o magistrado poderia ter previsto o que seria dito durante a manifestação? Ou os manifestantes, de alguma forma, deixaram ou deram a entender que fariam apologia ou instigariam o uso (‘maconha é uma delícia’), ou a ordem foi dada incorretamente e os manifestantes poderiam ter recorrido contra a ordem. A boa lógica democrática estabelece que, exceto quando há sólidos indícios de que um delito irá ocorrer, a justiça não deve constranger os direitos das pessoas antecipadamente. Caso contrário, começaríamos a prender pessoas só porque elas podem, um dia, vir a matar alguém.
Uma terceira hipótese para a proibição da manifestação não tem nada a ver com drogas: é o uso de uma das principais vias urbanas do país para fazer uma manifestação, causando sério impacto no direito de ir e vir de todas as demais pessoas. Mas, nesse caso, o problema é outro: a mesma via urbana, e outras igualmente importantes na mesma cidade, são fechadas para corridas a pé e de automóveis (inclusive durante dias de semana), shows, comícios etc.
3 - A terceira lição é que a polícia disse que reagiu para evitar uma briga iminente com ‘skinheads’. Esse é um problema que está se tornando mais comum ao redor do mundo. Sempre que alguém se predispõe a manifestar pela mudança de alguma coisa, quem é contra faz uma manifestação paralela contrária. Por princípio de boa administração pública, o segundo grupo (‘provocador’) é que deveria ser apartado do primeiro, e não o primeiro. Caso contrário, seria impossível fazer qualquer tipo de manifestação.