“Procuradoria quer cassar canal de TV que exibiu cena de estupro
O Ministério Público Federal está pedindo que a União casse a concessão de um canal de TV da Paraíba que exibiu em uma reportagem imagens de uma menina de 13 anos sendo estuprada.
A Procuradoria diz que o material, exibido na tarde do dia 30 de setembro pela TV Correio, afiliada da rede Record, se assemelhava a um ‘snuff movie’ (filme com cenas reais de tortura e morte).
O crime foi registrado por um adolescente de 15 anos com uma câmera de celular. A vítima é uma aluna de escola pública da região metropolitana de João Pessoa.
A polícia diz que ela foi estuprada por um inspetor da escola, de 20 anos. O material, apresentado desfocado, não identifica a vítima.
Segundo a polícia, a menina relatou ter sido atraída pelo instrutor até a casa dele quando saía da escola. Ela disse que foi dopado e, depois, estuprada (…)
O adolescente que fez o vídeo no dia 20 de setembro, segundo a polícia, alegou que a menina consentiu a relação sexual. Ele foi apreendido e o suspeito de estuprar a garota está foragido.
‘Ainda assim o caso seria considerado estupro de vulnerável, já que ela é menor de 14 anos’, afirmou a delegada Lídia Veloso.
Para o Ministério Público, a exibição de imagens envolvendo menores sofrendo violência, mesmo desfocadas, são proibidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (…)
O diretor-superintendente da TV Correio, Alexandre Jubert, afirma que a reportagem não identificou a menina.
‘A ação é uma forma de intimidar a imprensa. Outros canais já mostraram imagens bem piores’"
Esse é um assunto delicado e que vale a pena estudarmos. E ele é complicado porque envolve conflitos de direitos, ou seja, dois lados que podem estar igualmente certos. No caso, o conflito entre direito de imprensa e das crianças e adolescentes.
Há razões dos dois lados. A exibição do filme de um adolescente sendo estuprada certamente ferirá a sensibilidade de muita gente. Mas provavelmente interessou a outras pessoas, seja como notícia, seja como perversão, afinal, não teria sido exibido se não desse audiência.
Se por um lado temos o direito à informação, por outro lado temos o direito à proteção da juventude. São dois direitos conflitantes, e o magistrado terá de decidir qual direito é mais importante para a sociedade (uma das coisas que os magistrados normalmente fazem nesses casos é tentar evitar decidir uma hierarquia de direitos usando mecanismos que modificam ou especificam a pergunta a ser respondida. Por exemplo, ele pode simplesmente dizer que não se trata de um direito à informação, mas apenas uma curiosidade mórbida versus o direito de proteção dos jovens e, nesse caso, não há dúvida sobre o que deve é mais importante).
Mas há mais coisas que precisamos saber:
Primeiro, o argumento do diretor da emissora não o ajuda. Ele diz que é uma intimidação à imprensa e que outros canais mostram coisas piores. Ao dizer que outros canais mostram coisas piores ele está admitindo que o que mostrou é ruim. Apenas não tão ruim quanto outras coisas exibidas pela concorrência. Mas, em direito, duas coisas erradas não fazem uma certa. O fato de outros errarem não serve como desculpa para seu próprio erro (e, em suas palavras, o que ele exibiu é ruim).
O diretor da TV alega ainda que a imagem da menina aparece desfocada que ela não poderia ser reconhecida pelos espectadores. Mas ela certamente se reconhece. E saber que a cena foi vista na televisão e, mais, que o filme circulou entre seus colegas de escola pode ter lhe causado sofrimento. Pior: a reportagem pode ter atraído ainda mais audiência para o vídeo.
O segundo detalhe é que nossa lei é clara: fazer sexo com alguém menor de 14 anos, independente de seu consentimento, é estupro. Isso porque, para nossa lei, o menor de 14 anos não tem discernimento do que está fazendo e por isso não pode consentir em ter uma relação sexual.
Há pouco mais de uma década o STF, em um caso único, decidiu que uma adolescente de 13 anos que havia mantido relação sexual ‘consentida’ com seu namorado não havia sido estuprada. Mas aquele foi um caso único. A lei é clara: menor de 14 anos é sempre estuprado. É o que se chama uma presunção legal: a lei manda considerar que existiu um fato mesmo que este, na realidade, possa não ter existido. Em vez de se perguntar se o menor sabia o que estava fazendo ou não, a lei simplesmente decide que não sabia, sem possibilitar prova em contrário.
Mas quem estuprou quase cometeu um segundo crime: satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente. Isso porque nosso Código Penal não proíbe apenas fazer sexo com alguém menor de 14 anos. Ele proíbe também fazer sexo na presença de alguém menor de 14 anos. No caso da matéria acima, contudo, o adolescente que filmou tem 15 anos.
O terceiro detalhe é que quem pediu foi o Ministério Público Federal. Mas estupros normalmente são crimes da esfera federal. Por que, então, o Ministério Público federal está envolvido? Porque se trata de divulgação via internet e isso possibilita que qualquer pessoa, em qualquer estado ou país, possa ter acesso às imagens desse estupro. E os crimes que passam por essas fronteiras são crimes que passam a ser automaticamente de responsabilidade da Justiça Federal e, portanto, são investigados pela Polícia Federal e a acusação é feita pelo Ministério Público Federal.
Por fim, quando um jornal impresso ou uma revista cometem um erro, o governo não pode cassar sua concessão. Isso porque jornais independem de concessões para funcionar. Mas canais de rádio e TV dependem dessas concessões.
As empresas de TV e rádio podem ser criadas livremente, mas elas existem para transmitir programas e esses programas são transmitidos por meio de ondas eletromagnéticas/de rádio. E o direito de usar essas ondas para transmitir qualquer coisa pertence ao governo, que por sua vez concede a quem quiser o direito de usar uma determinada faixa de ondas para transmitir sua programação. Essa concessão é dada quando a transmissão é considerada de interesse público. Mas ela é apenas isso: uma concessão. Ela vale por um determinado tempo, apenas. Tão logo deixe de ser de interesse público ou o prazo da concessão termine, o governo pode toma-la de volta e até dar para um concorrente.
A questão, portanto, é mais complicada do que parece: não é só saber se há interesse jornalístico na divulgação das imagens de um estupro de uma adolescente e, se houver, se esse interesse pode se sobrepor ao direito de proteção do adolescente, mas saber também se essa divulgação pode ser usada para tirar a concessão porque já não é mais do interesse da sociedade que aquela empresa detenha o direito de usar as ondas para a transmissão de imagens de estupro.