“Emicida é detido por 'desacato' durante apresentação em BH
O rapper Emicida, 26, foi detido no início da noite de ontem sob suspeita de desacato durante um show que fazia em Belo Horizonte.
A apresentação, gratuita, fazia parte do festival Palco Hip Hop, na região do Barreiro, periferia da capital mineira. O próprio artista informou sobre a prisão pelo Twitter (…)
Segundo a assessoria de imprensa da PM de Minas, o rapper incitou o público a fazer gestos obscenos para a PM e para políticos durante a execução da música ‘Dedo na Ferida’, em protesto contra a desocupação, iniciada na sexta passada, de um terreno público na mesma região em que o show era realizado (…)
‘A polícia entendeu que a letra da música 'Dedo na Ferida' é um desacato. E o público levantou o dedo do meio durante a música em forma de protesto’, afirmou à Folha Evandro Fioti, irmão e empresário do rapper”
Uma música em si não é um desacato, mas usar uma música para ofender a dignidade de um cargo público pode ser desacato.
Desacato é qualquer palavra ou ato que ofenda a dignidade do cargo público. Não é um crime contra a honra da pessoa, mas contra a dignidade da administração pública. A ideia por trás desse crime é proteger a respeitabilidade dos cargos governamentais.
Tanto palavras – o que inclui músicas, poemas etc - quanto atos podem ser desacato. Mas, novamente, não é o ato ou palavra em si que o transforma em desacato, mas a intenção por trás dele. Mostrar o dedo do meio, cuspir nos pés (ou rosto!), xingar, praguejar, dar tapa, atirar objetos, morder, dar chute, participar em um coro etc podem ser considerados desacato. E, para serem, não precisam fazer menção ao cargo público. Basta que a intenção seja ofender o cargo. Por exemplo, na matéria acima, ninguém escreveu no dedo indicador ‘senta aqui, PM’, mas a intenção do gesto era ofender os membros da corporação.
A única hipótese em que a ofensa precisa fazer menção ao cargo ou à administração pública é quando a ofensa é feita contra um servidor que não está, naquele momento, atuando. Por exemplo, se você está na fila do supermercado e encontra o fiscal da prefeitura também fazendo compras e diz que ele é um fiscal vagabundo, você o estará desacatando, ainda que naquele momento ele não esteja no exercício de sua função pública: sua ofensa foi dirigida ao cargo dele. É o que os juristas chamam de ‘propter officium’.
Existe um outro detalhe interessante aqui: um servidor pode desacatar outro. Mesmo o superior hierárquico pode ser preso por desacatar o inferior. Não está nas funções do delegado chamar o detetive de ‘bastardo’. Se ele ofendeu o detetive, ele extrapolou suas funções e, por conta disso, agiu como uma pessoa comum, sem as qualidades do cargo, e fica sujeito à punição da lei.
No caso da matéria acima, a ofensa foi feita contra vários PMs ao mesmo tempo. Isso quer dizer que houve um desacato por PM? Não. Como a lei existe para proteger a dignidade do cargo (o Estado) e não o ocupante daquele cargo, não importa contra quantos servidores a ofensa foi feita: houve um único crime.
Mas então qualquer coisa que for dita contra o servidor público pode ser um desacato? Não. Primeiro, todos temos o direito à liberdade de expressão. O que a Justiça analisará é se houve a intenção de ofender ou apenas de expressar uma crítica. Segundo, se você é ofendido primeiro e simplesmente retribui a ofensa, não há desacato: é basicamente o mesmo caso do delegado acima: quem te ofendeu não tinha esse direito e agiu fora dos limites do cargo que ocupava. Terceiro, para a maioria dos juristas, durante uma exaltação de ânimos entre as partes não há desacato porque não há dolo específico de ofender. Com a cabeça quente, dizemos o que não queremos (essa é mais ou menos a mesma razão pela qual quem, bêbado, ofende um servidor público, acaba sendo absolvido do crime de desacato).
O servidor público precisa estar presente no local. Se não estiver (por exemplo, se o público da matéria acima cantasse uma música ofensiva ao servidor público sem que nenhum servidor estivesse presente ao evento), não haveria desacato (embora possa ter ocorrido calúnia, injúria ou difamação). Se ele estiver presente no local, ele pode ser desacatado ainda que ele não tenha presenciado o crime pessoalmente: basta que o crime tenha chegado a seu conhecimento. Logo, os policiais na matéria acima não precisam ter visto o dedo: basta que eles estivessem no local e outras pessoas tenham testemunhado os gestos ofensivos. Além disso, e ao contrário da injúria, o servidor não precisa se sentir ofendido. Novamente: o crime é contra a dignidade do cargo e não contra o seu ocupante.