“Ueba! Saiu o Rayban Cerveró!
E a piada pronta: ‘Ladrão furta três ares-condicionados de escola e deixa recado: calor é grande’.
Acho justo! No inverno ele devolve. Estão roubando ar-condicionado de criancinha.
Roubar ar-condicionado nesse calor é tipo furto famélico: roubar pra comer! Tá perdoado”
A piada serve para exemplificar um problema interessante do furto famélico.
Mas comecemos do início: às vezes, mesmo tendo feito tudo aquilo descrito na lei como um ato criminoso, a lei dirá que tal acão não configura um crime. Mata mas não é homicida, furta mas não é ladrão. É o que se chama de excludentes de ilicitude (ou, para travar qualquer língua, excludente de antijuridicidade).
É por isso que o dentista que extrai o dente do paciente ou o médico que remove o apêndice do enfermo não são condenados por lesão corporal. É por isso que quem pula o muro do vizinho para fugir do fogo em sua casa não é condenado por invasão de domicilio. E é por isso e quem atira contra o assassino para proteger a própria vida não é condenado por homicídio.
O exercício regular do direito (no exemplodo médico e do dentista), o estado de necessidade (no exemplodo vizinho) e a legítima defesa (no exemplo do atirador) são todos casos de excludentes de ilicitude.
O furto famélico é um tipo de estado de necessidade que, por sua vez, é um tipo de excludente de ilicitude.
O termo ‘furto famélico’ vem do mais básico dos estados de necessidade: alguém furta comida porque, não tendo dinheiro para se alimentar, se não furtar vai morrer de fome.
O termo hoje é usado não só para comida, mas também para outros gêneros de primeira necessidade, como medicamento essencial e cobertor.
Mas para que alguém possa alegar que o furto que cometeu foi famélico é essencial que exista a simetria que mencionamos na coluna de ontem.
Alguém que tem meios econômicos não pode alegar que precisou furtar para não morrer de fome, já que tinha como pagar pelo que furtou. Alguém que furta vários quilos de comida não pode alegar que precisou furtar para não morrer de fome, pois não precisava de vários quilos de comida, mas apenas um pequeno punhado. Alguém que furta cerveja não pode alegar que precisou furtar porque ela não é essencial para sobreviver.
E alguém que rouba não pode alegar furto famélico porque, diferente do furto, no roubo há violência ou grave ameaça contra uma pessoa e isso impossibilita a existência do furto famélico porque a assimetria entre o bem protegido (a manutenção de quem rouba) não justifica a ameaça à vida ou integridade física de quem é roubado. Por isso falamos em furto famélico, mas nunca em roubo famélico.
No caso da piada acima, o ladrão pode alegar furto famélico porque ele não roubou, ma furtou (tanto é assim que deixou o bilhete). Se tivesse roubado, seria impossível alegar estado de necessidade.
Mas o simples fato de ter furtado (em vez de roubado) não quer dizer que houve de fato furto famélico. Mesmo que ele consiga convencer um juiz que o ar condicionado era essencial para sua sobrevivência, é praticamente impossível ele convencer o juiz de que ele precisava de três aparelhos.
Mais uma vez: em todos os casos de excludente de ilicitude, é essencial que haja equilíbrio entre o bem agredido (no caso, a propriedade da escola e o bem-estar das crianças na escola) e o bem que se pretendia proteger (no caso, o conforto do criminoso).