“César, o papa e o califa
O mundo assistiu, estarrecido, ao vídeo em que dois jihadistas saem de um carro numa rua de Paris. Haviam acabado de chacinar 11 pessoas no semanário satírico. Um segurança está no caminho dos terroristas. É baleado; cai no chão. Um dos assassinos se aproxima e mata-o à queima-roupa.
E como reage o novo secretário da Justiça de Geraldo Alckmin (PSDB)? Ele se indigna. Profundamente. Não com o ato bárbaro dos extremistas, sobre o qual silenciou, mas com o ‘mau uso da liberdade de expressão’. Condena os cartunistas, não os assassinos (…)
O papa Francisco deu alguma legitimidade institucional a essa atitude, observando que, se um assessor insultasse a sua mãe, receberia um murro em resposta. Conclua-se que, se um cartunista desenhar Maomé, é normal que seja punido por isso. Eis um caso, ao mesmo tempo trágico e irônico, em que todos –César, o papa e o califa– estão de acordo.”
Claro que existem maus usos da liberdade de expressão. Ofender por ofender é claramente um mau uso. Tanto é assim que as leis penais de todos os países punem quem ofende outra pessoa voluntariamente. Da mesma forma, há o mau uso da liberdade de imprensa, e por isso termos jornais e jornalistas sendo condenados por seus excessos ou por publicarem matérias ofensivas ou mau apuradas que ocasionam danos.
O problema, como sempre, é saber o que é ofensivo. Por isso Estados democráticos precisam de um Judiciário imparcial para julgar se houve excessos na liberdade de expressão ou de imprensa.
Mas mesmo que haja claros excessos, não cabe nunca ao ofendido a punição do ofensor. Cabe ao Estado julgar aqueles que estão em seu território.
A reportagem abaixo, publicada também na Folha de hoje, é um exemplo clássico do que ocorre quando quem se sente ofendido resolve ser vítima, juiz e algoz ao mesmo tempo:
“Surfista é baleado por policial após discussão
O surfista Ricardo dos Santos, 24, conhecido como Ricardinho, foi baleado na manhã desta segunda (19) em frente à sua casa, na praia da Guarda do Embaú, em Palhoça (Grande Florianópolis).
O atleta catarinense, que já disputou etapas do circuito mundial de surfe, foi atingido por três disparos por volta de 8h40, após discussão (…)
De acordo com o comando da PM, os tiros foram disparados por um policial que passava férias na região (…)
Em depoimento, o militar disse que foi insultado pelo surfista. ‘Ele [policial militar] alegou que agiu em legítima defesa’, disse Arruda”.
Do ponto de vista puramente legal, o que o PM da segunda reportagem fez é a mesma coisa mencionada pelo papa e executada pelos criminosos no primeiro texto: alguém se sente ofendido e em vez de buscar a assistência do Estado para que este analise se de fato houve ofensa (e, se houve, impor e executar a reparação ou sanção), resolve fazer justiça com as próprias mãos. Mas ao rejeitarem os mecanismos estatais de justiça, de potencial vítima se tornam criminosos.
Mas há um segundo problema no argumento do papa e na ação do PM e dos terroristas.
Houve um tempo que era comum no Brasil homens traídos matarem as esposas e alegarem que agiram em legítima defesa da honra (basicamente a mesma coisa que, segundo a reportagem, o PM acima alegou).
O problema desse argumento, assim como o do papa do PM, e o dos terroristas, é a assimetria entre ofensa e reação, tanto no que tange a seu escopo e quanto a seu momento.
Para que haja legítima defesa, é essencial que a reação seja na defesa de uma ameaça imediata. Alegar legítima defesa em relação a uma ofensa ocorrida há meses não é legítima defesa porque nesse meio tempo poderia ter-se buscado o amparo da Justiça estatal. Legítima defesa só é possível quando não há tempo para buscar a proteção da Justiça. Ou reage agora ou depois já será muito tarde.
Mas mesmo que a reação seja imediata, ela precisa também ser proporcional ao possível dano. Se alguém fala algo ofensivo, você pode até revidar falando algo igualmente ofensivo e alegar legítima defesa já que há uma simetria entre as duas honras ofendidas. Mas não pode dar tiro como o PM e os terroristas, ou um soco como o previsto pelo papa, porque a reação (um crime contra a vida ou contra a incolumidade física do ofensor) é desproporcional em relação à ação original que ensejou sua reação: uma ofensa contra a honra. Daí maridos traídos não poderem matar a esposa e alegarem legítima defesa da honra.
Enfim, se você se sentir ofendido – qualquer que seja a ofensa – leve o problema à Justiça ou ao terapeuta; ignore, chore ou sorria. Mas não reaja cometendo um crime.