“Prince William ‘wants all royal ivory destroyed’
The Duke of Cambridge would like all the ivory held by the Royal Family to be destroyed as part of his campaign against elephant poaching, it was reported yesterday (…)
The revelation came a day after The Times disclosed that Prince Charles had asked for ivory items on display at his home to be removed from view”
A matéria diz que o príncipe William disse que deseja destruir todas as peças da família real que contenham marfim para evitar a caça de elefantes. Algo como 1.200 peças de arte, que vão de cadeiras a pianos.
A ideia é que se a realeza não coleciona tais peças, menos pessoas desejarão colecioná-las, o que evitará a caça ilegal de elefantes.
Tecnicamente ele quer mas não pode – mesmo depois de tornar-se rei – porque as peças não pertencem a ele. As peças são guardadas pelo soberano com seu usufruto, mas pertencem a todos os futuros soberanos (em inglês é chamado de ‘trust’ e não há um instrumento jurídico equivalente no Brasil. O mais próximo são as fundações).
O debate pode até parecer fútil, mas é importante porque atinge muitas outras áreas para as quais o direito não tem respostas satisfatórias.
Diamantes de conflitos, por exemplo, são extremamente valiosos e estão espalhados pelos dedos anelares de milhões de noivas em todo o mundo. Pérolas extraídas por pessoas em condições análogas a escravos adornam os pescoços de muitos de nós. E a lista parece ser infinita. A maior empresa de informática do mundo recentemente se viu envolvida em um escândalo porque seu principal fornecedor mantinha milhares de pessoas em condição análoga a escravos na China, fabricando o tablete no qual você provavelmente está lendo esse texto.
Onde há cobiça e vontade de ostentar, aparecem fornecedores. E quase sempre alguns ou muitos desses fornecedores conseguem os produtos através da exploração humana, animal ou de recursos naturais.
Óbvio que podemos não comprar tais produtos. Às vezes é uma questão legal (caso de drogas) outras vezes puramente moral (caso dos tabletes).
Mas o que fazer com os produtos que já existem? O que fazer com o dano já causado?
Devemos simplesmente destruir? Mas e o valor histórico desses objetos? Não deveríamos simplesmente colocá-los em museus?
Mas, ao colocarmos em museus, aumentamos ainda mais seu valor, não? O que, por conseguinte, aumenta a cobiça e a vontade de termos e ostentarmos algo parecido (essa é a lógica seguida pelo príncipe na matéria acima).
Justamente daí por que tantos países preferem destruir o marfim recuperado de caçadores ilegais. Sim, os elefantes já estão mortos e o marfim extraído. O marfim poderia ser vendido e os recursos reinvestidos no combate do tráfico de marfim, da mesma forma como a Justiça vende bens apreendidos de criminosos e os transformam, ao menos em teoria, em recursos reinvestidos no combate ao crime.
Pior: ao destruir o marfim, diminui-se a oferta, o que necessariamente aumenta o valor do marfim disponível e, por consequência, o incentivo para que caçadores matem mais elefantes.
Mas a outra solução é igualmente complicada. Ao vendê-lo, estamos ajudando a manter o mercado consumidor que queremos que desapareça. É algo similar a vender a cocaína apreendida para usar tais recursos na luta contra as drogas.
Se isso já não fosse complicado o suficiente, vale lembrar que muitas dessas obras de artes contendo produtos como diamantes de conflitos ou marfim estão nas mãos de colecionadores privados. Deveríamos tomar de volta aquilo que, quando adquirido, era legal e moralmente aceito?
Pense, por exemplo, nas terras que nossos ancestrais compraram ou tomaram dos índios. Deveríamos confiscar seu apartamento para desfazer o que hoje sabemos que foi uma exploração mas que naquela época era moral e legal?
Mas se aqueles que herdaram ou compraram quando era legal mantiverem o que têm, por que também não podemos fazê-lo? Apenas porque herdaram sem esforço? Isso não seria injusto com aqueles que estão trabalhando com afinco para também construírem seu patrimônio? Pior: isso aumenta ainda mais o valor das peças ilegais, pois, novamente, diminui a oferta em um mercado que ainda cobiça. E aumenta o valor das peças que foram herdadas sem qualquer esforço.
Pense, por exemplo, no planejamento urbano. Se a prefeitura proíbe a construção de novos prédios em uma região, ela valoriza o imóvel já construído, muitas vezes herdados sem esforço do atual dono, e priva quem está trabalhando duro de adquirir um imóvel ali (ou o força a comprar de quem herdou por um preço exorbitante).
Ou pense no caso da emissão de CO2 na atmosfera ou desmatamento. Países como China e Índia, no primeiro caso, e Brasil, no segundo, alegam que é injusto países desenvolvidos tentarem impor limites já que eles se tornaram desenvolvidos justamente porque, no passado poluíram e desmataram sem limites. Não seria justo que os países desenvolvidos, hoje, impusessem limites que vão prejudicar o desenvolvimento de países mais pobres. Por outro lado, se não há a imposição de limites, o meio ambiente (e nós) saímos todos perdendo.
Ou pense nas milhares de obras de artes descobertas recentemente em um apartamento na Alemanha. São obras tomadas pelo regime nazista mas cujos donos originais já não sabemos quem são e que, ao que parece, estão nas mãos do dono legalmente. O que fazer com elas? Tomar para desfazermos uma tragédia histórica? Destruí-las para servir de exemplo? Manter com quem estão?
Ou pense em locais onde tragédias humanas ocorreram. Devemos destruí-la como exemplo, como as estatuas de Saddam Hussein, o Muro de Berlim e o Carandiru? Ou devemos preservá-las como memória de um passado tenebroso, como Auschwitz e Robben Island? Debates como esse surgem com frequência em assuntos que envolvem fortes emoções- como nos casos das Torres Gêmeas e do Doi-Codi - mas também no dia a dia, como nos casos de tombamentos (ou não) de casas pelo patrimônio histórico municipal, estadual ou nacional.
E se hoje descobrirmos que você mora no local onde uma grande tragédia ou evento histórico ocorreu?
Para nada disso o direito encontrou ainda uma solução adequada.