“Após descobrir traição, mulher atropela marido
Enfurecida após descobrir a traição do marido, uma dona de casa de Várzea Paulista (54 km de SP) o atropelou na frente dos três filhos do casal anteontem. Ela foi presa. O homem teve as duas pernas quebradas e está internado em um hospital de Jundiaí (58 km de SP).
Segundo o boletim de ocorrência, o atropelamento aconteceu depois de uma briga. Após agredir o marido com tapas e socos, a mulher o atropelou com o carro da família (…)
Um inquérito foi aberto e a mulher será indiciada sob suspeita de homicídio doloso (com intenção de matar). A reportagem não conseguiu localizar o advogado da mulher.”
Duas coisas interessantes nessa matéria: primeiro, ela usou o carro como uma arma. Aqui não é o caso de analisar se ela assumiu o risco (dolo eventual) ou se ela previu o risco mas achou que não aconteceria (culpa consciente). Ela quis produzir o resultado, e isso em direito chama-se dolo direto.
Mas qual resultado? Ela quis matar ou apenas ferir. Não dá para saber porque a matéria diz que ela será indiciada por homicídio doloso.
Isso é impossível: o marido atropelado ainda está vivo! Você não pode ser condenado por matar alguém que está vivo.
Ou ela será indiciada por tentativa de homicídio ou pela consumação do crime de lesão corporal grave. Vamos por partes:
Você tenta cometer um crime quando você não consegue concluir o crime conforme planejado por alguma razão que vai além de sua vontade e controle. Por exemplo, se ela queria matar o marido e não conseguiu, é uma tentativa de homicídio. Ela fez tudo que havia planejado para mata-lo: entrou no carro, ligou o motor, acelerou e o atingiu. Ele não morreu porque ou ele teve muita sorte ou ela não acelerou o suficiente. Não importa: ela não o matou por alguma razão que vai além de sua vontade e controle. Mas ela tentou.
Mas se ela queria apenas feri-lo de forma grave (o que em direito é chamado de lesão corporal grave), ela conseguiu. E conseguir cometer um crime, em direito, chama-se consumação. Ou seja, o crime consumado é o crime completo. Se ela não queria matar, mas apenas machucar, ela não só fez tudo necessário para atingir seu objetivo, como de fato conseguiu atingir tal objetivo.
Pense na seguinte analogia: você decide correr, e corre 100 metros. Se você queria correr uma maratona, você tentou mas não conseguiu atingir seu objetivo, mas se você queria correr apenas 100 metros, você completou seu objetivo. A mesma coisa ocorreu na matéria acima: se ela queria matar, ela apenas tentou. Se ela queria machucar, ela consumou sua intenção.
O problema para a justiça vai ser tentar descobrir o que exatamente estava se passando por sua cabeça. Óbvio que não dá para a justiça entrar dentro da cabeça dela para descobrir a verdade, mas quase sempre expressamos a verdade através de nossas ações: falamos o que estamos pensando, escrevemos nosso plano para não nos esquecermos, compramos material para cometer um determinado tipo de crime, deixamos marca de pneu no chão, confessamos porque nos arrependemos etc. Será usando essas evidências que a justiça terá de decidir qual era a intenção da autora do crime.
E faz diferença ser julgado por um ou outro crime? Faz, e muita. Por exemplo, se ela quis matar, o crime será julgado por um tribunal do júri, já que foi a tentativa de cometer um crime doloso contra a vida. Mas se ela quis apenas machucar, será julgado por um juiz de direito, porque será um crime contra a incolumidade física do marido.
Outro exemplo? Do ponto de vista de pena, há também uma diferença grande. A pena de tentativa de homicídio é a mesma do homicídio, reduzida entre 1/3 e 2/3. Isso dá uma pena que varia de 2 anos a 13 anos e 4 meses. Já a pena para o crime de lesão corporal grave varia de 1 a 5 anos. E se a lesão corporal for gravíssima (perda das pernas ou deformidade permanente, por exemplo), a pena sobe: de 2 a 8 anos.