“Conselho defende mãe acusada por filho
O Conselho Tutelar de Itapecerica da Serra (Grande SP) enviou relatório ao fórum da cidade, no fim da tarde de ontem, defendendo os pais suspeitos de deixar seus três filhos presos em casa.
No sábado, o filho de 11 anos de Helena Alves Ferreira, 33 (o pai, que mora na mesma casa, não foi identificado), ligou para o 190 e disse que era comum ficar trancado em casa sozinho com os irmãos -um de dois anos e outro de cinco meses-aos fins de semana e que sofriam maus-tratos da mãe.
Anteontem, as crianças foram enviadas ao abrigo municipal por decisão do juiz Gabriel Sormani. No documento -que serve como auxílio ao juiz para decidir o tempo das crianças no abrigo-, os conselheiros disseram que as crianças não têm marcas de agressões e são bem cuidadas. Afirmaram, ainda, que a casa, de cinco cômodos, no Jardim das Oliveiras, é arrumada -eles a visitaram.
O conselho afirma que há indícios de haver conflitos familiares e com os vizinhos, o que pode ter levado a criança a ligar para a polícia (...)
Especialistas criticam o fato de as crianças já terem sido levadas para um abrigo. 'O juiz foi precipitado, não é qualquer caso que se manda a criança para o abrigo', diz Maria Stela Graciani, da PUC-SP”
Sem entrar nos detalhes do caso (ninguém sabe o que aconteceu), a matéria levanta duas questões importantes sobre quando estamos lidando com crianças:
Primeiro, crianças mentem. Mentir – ou seja, conseguir desassociar o que você diz da realidade que você presencia – é um sinal de desenvolvimento intelectual. Uma criança pequena é incapaz de mentir porque ela ainda não chegou a esse ponto de desenvolvimento intelectual, mas com o tempo e o amadurecimento, ela passa a conseguir desassociar o mundo no qual vive do mundo que diz viver. Se você pensar bem, verá que esse é um tremendo salto da humanidade. Um leão não mente para a gazela fingindo ser outro animal. Ele é um leão e consegue apenas ser um leão. Já nós, adultos, mentimos o tempo todo. Sua esposa acabou de dizer que se apaixonou por seu melhor amigo. Você sai de casa, chega no trabalho e seu chefe te pergunta como você está e você diz 'vou bem, obrigado'. Óbvio que você não vai bem: você acabou de ser abandonado. Mas sua resposta diz que está tudo bem. A realidade e o que você diz ser realidade são contraditórios. Você só consegue fazer isso porque é um ser inteligente e com imaginação. Você teve de criar um mundo que não existe dentro de sua cabeça.
Pois bem, crianças muito pequenas não são capazes de fazer isso, o que não quer dizer que elas só passam a mentir quando se tornam adultas. É um processo lento que acontece ainda na infância. A lei não consegue estabelecer uma idade exata, e vai depender de criança para criança. Quando muito, os psicólogos podem tentar testar a criança.
O fato é que o magistrado deve levar isso em consideração. Nem tudo que uma criança diz é verdade. Se fosse, as crianças seriam as melhores testemunhas do mundo. Mas elas sequer podem ser testemunhas ou prestar o compromisso de dizer a verdade (o famoso ‘você promete dizer a verdade, somente a verdade...’ que vemos nos filmes americanos).
O outro ponto – diametralmente oposto, mas que complica a vida do magistrado da mesma forma – é que ainda que ela esteja dizendo a verdade, ela está dizendo a verdade de acordo com sua interpretação do mundo, e essa interpretação ainda é de alguém que não tem maturidade intelectual ou emocional.
Todo mundo já presenciou alguma criança chorando desesperadamente por alguma coisa tola (porque o pai não lhe deu um bombom ou porque a mãe a mandou ficar no carrinho ou porque os monstros que vivem debaixo da cama vão atacar se a luz for apagada). Claro que algumas choram como uma forma de negociação (que, aliás, funciona com uma frequência incrível), mas a maior parte chora porque realmente acredita que ficar no carrinho é o fim do mundo, que o bombom é essencial para sua sobrevivência ou que os monstros debaixo da cama vão atacar se a luz for apagada. Para a criança, aquilo é a realidade. Repare bem da próxima vez que ouvir uma criança contando suas últimas peripécias. Para ela, ter conseguido escorregar 5 vezes no parquinho é tão emocionante quanto uma aventura do Indiana Jones. Isso porque é assim que ela interpreta sua realidade.
Uma criança que foi deixada de castigo ou que foi mandada para o quarto sem sobremesa ou cujo pai chegou atrasado para pega-la na escola pode achar que foi agredida, negligenciada, abandonada etc. Pode de fato ter sido o que aconteceu. Ou não. Vai caber ao juiz decidir, mas ele precisa usar extremo bom senso e cautela para não cometer uma injustiça.
Não podemos nos esquecer nunca que o caso da Escola Base começou com mentiras de crianças e que quatro adultos tiveram suas vidas destruídas por causa daquelas mentiras.
Enfim, crianças, por um lado, são muito mais indefesas do que adultos e por isso precisam ser protegidas de forma especial. Por outro lado, são mais inteligentes do que parecem, logo, mentem mais do que pensamos. Junte isso com a incapacidade de entenderem as consequências de suas mentiras e com as distorções naturais de alguém que vê o mundo de forma imatura ou inocente (como você preferir), e tem-se uma mistura capaz de gerar enorme tensão em um processo.