“Tese de fraude em empréstimo ganha força
Ao votarem pela condenação de ex-dirigentes do Banco Rural, relator e revisor do processo do mensalão no Supremo deram respaldo a um ponto central da acusação: o de que os empréstimos ao PT e às empresas do publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza eram de fachada.
A condenação complica as situações do ex-presidente do PT José Genoino e do ex-tesoureiro da sigla Delúbio Soares, que tomaram R$ 3 milhões do Banco Rural para o PT em 2003. Acusados de formação de quadrilha e corrupção ativa, eles aguardam julgamento (...)
O relator Joaquim Barbosa votou pela condenação por gestão fraudulenta de Kátia Rabello, dona do banco, José Roberto Salgado, ex-vice-presidente, e dos executivos Ayanna Tenório e Vinícius Samarane. O revisor, Ricardo Lewandowski, condenou Kátia e Salgado. Completará seu voto amanhã (...)
Em seu voto, Barbosa disse que os réus ‘em divisão de tarefas típica de uma quadrilha’ atuaram ‘na simulação de empréstimos bancários, bem como utilizaram mecanismos fraudulentos para encobrir o caráter simulado dessas operações de crédito’.
Para os ministros e para a acusação, os empréstimos eram de ‘fachada’ porque não seriam pagos. Quando liberava dinheiro, diz a acusação, o banco não cobrava garantias reais nem dívidas anteriormente contraídas (...)
Os ministros disseram que o banco cometeu fraude ao fazer uma classificação irreal dos riscos, violando normas do sistema financeiro. E citaram auditorias do Banco Central e laudos da Polícia Federal que afirmam que o Rural deixou de informar o real risco das operações.
O BC e a PF apontaram que os empréstimos eram renovados sem pagamento, outra evidência de fraudes, segundo os ministros.
Para ilustrar a tese, eles citaram o caso do mensalão mineiro, que envolveu o PSDB de Minas Gerais e também está no STF, no qual uma dívida original de R$ 13 milhões de uma empresa de Marcos Valério com o Rural foi quitada por R$ 2 milhões”
Gestão fraudulenta é a gestão na qual o administrador muda ou disfarça a verdade. Em outras palavras, ele cria uma mentira para enganar alguém (normalmente as autoridades fiscalizadoras).
Por exemplo, se o administrador diz que determinada transação ocorreu sem que isso seja verdade, se ele deixa de contabilizar uma operação que ocorreu, se ele insere recibos falsos ou recibos verdadeiros mas para serviços ou produtos que nunca comprou, ele está fraudando. Em outras palavras, existe uma lacuna entre o que ele diz que ocorreu e a veracidade material (dos fatos) ou ideológica (da justificativa/ propósito dos fatos).
Na vida real, se você quiser perder dinheiro, não há problema: o dinheiro é seu e você faz dele o que quiser. É (basicamente isso que fazemos todas as vezes que apostamos na loteria). Mas empresas raramente pertencem a apenas uma única pessoa. Esses acionistas precisam ser protegidos.
Mas mesmo que pertencessem a uma única pessoa, as instituições financeiras ainda assim estariam submetidas à lei que combate a gestão fraudulenta. Isso porque o sistema financeiro nacional é interligado: a quebra de um banco inevitavelmente causa problemas em todo o sistema (os mais velhos vão se lembrar da última ‘quebradeira’ de bancos, ocorrida em 1997/8, quando o governo deixou de equiparar o real ao dólar; ou basta olhar para o que está acontecendo na Europa nos últimos quatro anos). É o que se chama de risco sistêmico: a quebra de uma única instituição financeira abala todo o sistema.
Esse é um crime formal. Em juridiquês isso significa que ele não precisa ter gerado nenhuma consequência. Não é necessário que as instituição financeira gerida pelo criminoso ou outras empresas ou pessoas sejam impactadas pela fraude. Na verdade, eles podem até ter ganho dinheiro com isso (afinal, esse normalmente é o objetivo). Para a lei isso não importa: basta que a fraude tenha ocorrido.
Mas a lei não pune apenas aquela pessoa que frauda: ela pune também aquela que, embora não fraude, age irresponsavelmente. É o que ela chama de gestão temerária.
Aqui o problema é que quem deveria agir com prudência não o faz.
Óbvio que a gestão de qualquer instituição traz consigo um determinado risco e nunca podemos prever o futuro. Os responsáveis estão sempre tomando hoje decisões sobre um futuro que é, por definição, incerto. Não é isso que a lei pune (ou todo banqueiro estaria preso). O que ela pune é aquela pessoa que foi além do que pode ser considerado normal.
O xis da questão é se a pessoa agiu razoavelmente, como o gestor responsável de uma instituição financeira deveria agir. Óbvio que o parâmetro de comparação são outros gestores de instituições financeiras e não uma pessoa qualquer. Afinal, a ‘pessoa qualquer’ não tem o conhecimento técnico para gerir a organização.
Esse também é um crime formal: basta que haja a temeridade, sendo desnecessária qualquer consequência.
Como a imaginação dos criminosos não tem limites, a lei não diz o que ela considera ser fraude ou temerário: fica a critério do magistrado usar o bom senso para definir se a conduta se encaixa numa ou noutra (ou em nenhuma) definição.
Porque na fraude há a intenção de criar uma mentira ou enganar e na gestão temerária há ‘apenas’ a irresponsabilidade, as penas são diferentes. A Lei 7.492/86, que trata dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, estabelece pena máxima de 12 para a fraude e até 8 anos para a temerária.
Um último detalhe: é praticamente impossível imaginar que alguém que age fraudulentamente não esteja, ao mesmo tempo, agindo temerariamente. Mas se a conduta é a mesma, o crime maior (gestão fraudulenta) abrange o menor (gestão temerária). É a mesma coisa do homicídio: é impossível ser cometido sem cometer lesão corporal, mas se a conduta é a mesma, o criminoso só responde pelo crime mais grave.