“A vida nunca foi fácil para a faxineira Rita Cássia Faria, filha de uma mãe alcoólatra, que a obrigou a ser babá aos 13 anos. Anos mais tarde, desempregada, não tinha como alimentar os filhos e assaltou um supermercado. ‘Estava desesperada.’
Não voltou para casa: saiu dali para cadeia, onde ficou por um ano. Agora vai receber uma homenagem graças à Edith Piaf, um dos símbolos da música francesa - a homenagem virá na forma da ‘Non, je ne regrette rien’ (Não me arrependo de nada).
A música foi gravada por Juliana, de 14 anos, filha de Rita. "Descobri a história de Piaf e achei que tinha muito a ver com minha mãe."
(…)
A música passou na vida de Rita -mas de raspão. Ela fez um furo na lona de um circo e deu um jeito de ver o espetáculo, onde fizeram um concurso para a melhor cantora da platéia. Ganhou. ‘Minha paixão era cantar’. Foram seus cinco minutos de glória. Teve seis filhos, vivendo cada vez mais apertada, a tal ponto que, desempregada, tentou levar comida do supermercado -Juliana e os irmãos foram morar com uma avó. ‘Tentei explicar para os guardas que estávamos passando fome, mas não adiantou.’
Cumprida a pena, arranjou o emprego de faxineira e voltou a estudar. Está terminando o supletivo do ensino fundamental e pretende continuar. ‘Quero ser assistente social.’ Já perdeu qualquer ilusão musical.”
Vez por outra alguém me diz que tentar diferenciar roubo de furto é preciosismo. A própria existência desse blog há mais de quatro anos é prova de que não gosto preciosismo jurídico. Mas, essa diferença específica é importante, pois faz diferença para o leitor.
Na matéria acima, como o autor não define se foi furto (não houve violência) ou roubo (houve violência), não consigo definir se fico com pena ou não da personagem. Se houve violência (ou seja, se foi roubo), não há como ficar com pena: ela colocou a vida de outra pessoa em perigo imediato para proteger um bem jurídico de um perigo mediato (sua vida ou, mais provavelmente, seu bem estar físico). Por outro lado, se foi furto (não houve violência), é mais uma história muito triste de erro judicial cometido por algum magistrado e promotor despreparados, e um defensor público incompetente, pois ela agiu em estado de necessidade, no que chamamos de furto famélico, que é quando a pessoa furta algum bem básico (normalmente comida) para conseguir sobreviver. No caso, matar a fome (mas poderia ser um cobertor para se proteger do frio, ou remédio essencial para sua saúde etc). O furto famélico já inspirou grandes romances sobre a necessidade e compaixão humanas, como Os Miseráveis, de Victor Hugo. Roubo jamais vai inspirar um romance. Quando muito, um filme policial ou de terror.
Como disse, o furto famélico é uma forma de estado de necessidade. Estado de necessidade, é quando uma pessoa, para proteger um bem jurídico, acaba ferindo um outro bem jurídico de igual ou menor valor. O furto famélico é estado de necessidade porque o bem jurídico protegido (vida) é mais valioso do que o bem jurídico agredido (propriedade). Porque o estado de necessidade é uma das excludentes de ilicitude, a lei não considera que a pessoa cometeu um crime e, por isso, não deve ser punida. É por isso que eu disse que houve um erro do juiz, promotor e defensor se, o que houve, foi um furto famélico.
Nós já vimos outra excludente de ilicitude quando falamos de legítima defesa aqui. E nós já vimos inúmeros outros exemplos em que a confusão entre roubo e furto (ou o uso do termos assalto) serviu para desinformar o leitor. Basta olhar, por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui.