“’Eu perdi o controle’, disse à Folha a nutricionista Gabriella Guerrero Pereira, 28, sobre o acidente que matou o administrador Vitor Gurman, 24. Ele foi atropelado pelo Land Rover blindado conduzido por ela, no sábado passado, na rua Natingui, Vila Madalena, bairro da zona oeste de São Paulo.
Em entrevista exclusiva, feita no escritório de seu advogado, ela chorou várias vezes. Negou estar embriagada na hora do acidente. Disse que ingeriu apenas uma margarita em toda a noite.
Ela afirmou ainda que não fez testes de bafômetro e sangue porque eles não foram pedidos pelas autoridades.
Gabriella disse ter optado por dirigir porque o namorado Roberto Lima, 34, estava embriagado. Ele se feriu no acidente, mas passa bem”
E no dia 23 de julho:
“Horas depois de depor na polícia, na quinta, o engenheiro Marcelo Malvio Alvez de Lima, 36, recebeu a coluna para uma entrevista exclusiva. No escritório de seu advogado, Celso Vilardi, com a mãe, Mavilia, e da irmã, Elizabeth, falou sobre o acidente que vitimou a advogada Carolina Cintra Santos, 28, no dia 9. Ele dirigia um Porsche na rua Tabapuã, no Itaim Bibi. E ela, um Tucson na rua Bandeira Paulista. Os carros se chocaram no cruzamento. Marcelo é acusado pela polícia de homicídio doloso, em que há intenção de matar (…)
Eu estava parado no farol anterior com um carro que chama a atenção. Duas pessoas que olhavam demais para o carro começaram a vir na minha direção. O farol abriu e eu saí um pouco mais rápido. Não sei precisar a velocidade. Eu estava sozinho, não estava apostando corrida com ninguém. Estava sem sono, indo comer um lanche.
Eu posso ter passado da velocidade da via, que é 60 km/h. Mas eu definitivamente não estava a 150 km/h [velocidade apontada pela polícia]. Em 200 metros da rua Tabapuã, é muita velocidade, é absurdo. E eu estava parado no farol anterior. Eu não vinha correndo. E, se o farol da frente [onde ocorreu a batida] estivesse fechado, eu teria parado. Porque eu não passo em farol vermelho. [Pausadamente] Eu não passo em farol vermelho. Isso é um fato”
Quem acompanha o Para Entender Direito já percebeu que nunca damos opinião sobre casos. A idéia é ensinar sem opinar. A opinião cabe ao leitor. Com isso em mente é que iremos comentar algo em comum nos dois casos acima. Mas, novamente: isso não quer dizer que os suspeitos sejam culpados ou inocentes. Nós aqui não sabemos (e, a bem da verdade, não nos interessa). As únicas pessoas que podem saber se são culpados são eles mesmos.
Dito isso, você notou algo idêntico em ambas as matérias? Se não, as releia com cuidado.
Resposta: ambas as entrevistas foram dadas nos escritórios dos advogados.
Você já se perguntou por que ambos resolveram dar suas versões em entrevistas exclusivas para o jornal e por que essas entrevistas estão sendo dadas nos escritórios dos advogados? Isso faz parte de uma estratégia de defesa jurídica.
Você certamente já ouviu falar de ‘julgamento pela mídia’. Essa expressão é usada, normalmente, para nos referirmos a um tipo de reportagem sensacionalista que condena o suspeito antes de ele ser julgado pela justiça. A estratégia acima é um contra-ataque dos advogados a esse ‘julgamento pela mídia’.
Mas por que os advogados de defesa perderiam tempo tentando arquitetando entrevistas dos suspeitos na mídia se quando o que realmente interessa é o julgamento nos tribunais. Por mais que a mídia faça barulho, ela não é capaz de colocar alguém atrás das grades, certo?
Mais ou menos.
Os bons advogados adotam essa estratégia de contra-ataque justamente porque é importante para o julgamento da justiça.
Os crimes dolosos contra a vida – e eles incluem o homicídio no trânsito quando a pessoa está alcoolizada ou quando está muito acima da velocidade permitida – são julgados não por um juiz, mas por um tribunal do júri (os chamados ‘jurados’).
O júri nada mais é do que pessoas comuns, que não precisam entender nada de direito. Eles estão lá para dizer se acreditam nessa ou naquela versão dos fatos, e não para dizer qual é a lei aplicável.
E o que quer que eles decidam, o juiz de direito não pode discordar deles. Ainda que queira muito. A decisão do júri é soberana.
Pois bem, por um lado os jurados são pessoas comuns vindas diretamente do 'mundo real'. Eles leem jornais, assistem TV etc. Muito provavelmente eles já chegarão ao tribunal tendo ouvido falar desses casos, já que os casos tiveram muita repercussão na mídia. Por outro, eles decidem se acreditam nessa ou naquela versão. Mas eles não entendem nada de direito. Eles julgam baseados no que eles ouvem no tribunal. Mas, como acabamos de dizer, é impossível eles chegarem ao tribunal sem terem algum conhecimento da causa já que ela foi divulgada por todos os canais e jornais.
O que os advogados de defesa estão tentando fazer em ambos os casos é neutralizar a predisposição negativa dos jurados contra seus clientes e, se possível, predispô-los favoravelmente a seus clientes antes mesmo de o julgamento começar, mostrando o ‘lado humano’ de seus clientes
O Ministério Público (acusação), por outro lado, tentará fazer o contrário, mostrando o lado da vítima ou o ‘lado monstro’ do suspeito.
Em casos de grande repercussão, é comum a defesa é tentar evitar que o caso vá parar no tribunal do júri, alegando que não se trata de um crime doloso contra a vida (como no caso da morte do índio Galdino dos Santos). Mas se isso não é possível ou é pouco provável de acontecer, os bons advogados de defesa começam uma 'campanha de defesa' nos jornais e TVs para tentar convencer potenciais jurados antes do caso ser de fato julgado pelo júri.