“Grupo comprou lote de vinho raro para Demóstenes
A íntegra do inquérito que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) e áudios da Operação Monte Carlo mostram que em agosto de 2011 Cachoeira e seu assessor Gleyb Ferreira da Cruz conversam sobre um vinho Cheval Blanc, safra 1947.
A bebida, que já teve uma garrafa especial leiloada por mais de R$ 500 mil, seria comprada para o senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), ao custo de até US$ 2.950 a unidade (…)
Eles comemoram o negócio dizendo que as cinco unidades saíram por menos de US$ 14 mil (…)
Outra que recebeu favores foi Eliane Pinheiro, então chefe de gabinete do governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB). Cachoeira pediu que assessores a levassem ao aeroporto, onde embarcaria para Las Vegas com Geraldo Messias (PP), prefeito de Águas Lindas (GO).
Após a viagem, o prefeito agradece a Cachoeira. ‘Sou fiel a você no pouco e no muito. O que você mandar fazer você tem que pensar duas vezes porque é ordem, tá certo?’, diz Messias.
Eliane também agradece: ‘Meu lugar é Las Vegas.’
Segundo a PF, Cachoeira também trazia presentes do exterior para Eliane”
O art. 11 da Lei 8.429/92, a chamada Lei da Improbidade Administrativa, é um dos artigos mais interessantes nas leis penais brasileira. Isso porque ele pune diretamente quem desrespeita um princípio moral. Na verdade, vários princípios.
Pense no homicídio: “matar alguém. Pena – de 6 a 20 anos de reclusão”. Ele está protegendo a vida e não um princípio. E é assim com a maior parte dos crimes.
A lei penal quase sempre pune fatos que desrespeitam direitos, e não os princípios que geram esses direitos. É como se ela punisse qualquer atentado contra a árvore, a fruta, a terra, o ar etc. Mas não os atentados contra o princípio da vida, que é o que liga tudo isso.
Mas o art. 11 da Lei da Improbidade Administrativa diz que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
IV - negar publicidade aos atos oficiais;V - frustrar a licitude de concurso público;
VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço.”
Em nenhum momento o artigo diz que o Estado precisa ter sofrido uma perda ou o criminoso percebido um ganho. Basta agir de forma a não cumprir um dos quatro deveres: honestidade, legalidade, lealdade e imparcialidade.
A lei enumera sete exemplos (daí a palavra “notadamente”), mas não restringe as ações ou omissões capazes de ferirem os princípios da administração pública a esses sete casos. Ela deixa a cargo do magistrado o poder de dizer se alguma ação que não esteja incluída na lista pode ferir um dos quatro deveres listados.
Mas ele é prefeito, uma outra pessoa é senadora (cargos eletivos do Executivo estadual e do Legislativo federal), e a terceira pessoa é ocupante de cargo comissionado do Executivo estadual. Elas não são servidores concursados. Podem ter cometido improbidade?
O art. 1o da lei diz que “os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes (…) serão punidos na forma desta lei”. A lei inclui agentes públicos dos três poderes. E o art. 2o da mesma Lei, para evitar dúvida, diz que “reputa-se agente público (…) todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”. Ou seja, alguém eleito ou em cargo comissionado é agente público.
Então é fácil enquadrar um agente público que age erroneamente nesse artigo, certo? Não necessariamente. O problema está nos quatro deveres. É aqui que, normalmente, muitos agentes públicos conseguem se livrar da lei.
A lei elenca apenas a honestidade, a legalidade, a lealdade e a imparcialidade. Qualquer outra ação que que viole algum outro dever – como a moralidade ou eficiência – não pode ser punida com base nesse artigo. Se o que o agente fez é imoral mas não ilegal, ele não pode ser punido por desrespeitar esse artigo. Se ele foi ineficiente mas honesto, ele também não pode ser punido nesse artigo.
No caso do prefeito mencionado na matéria, por exemplo, se houver evidência de que ele agiu com lealdade ao suspeito e não à administração pública, ele terá cometido o ato de improbidade do art. 11. Mas ele só pode ser punido com base nesse artigo se ele foi além das palavras e de fato agiu sem lealdade à prefeitura.
Mas a matéria acima menciona que os três ganharam vinhos e outros presentes custando milhares de reais. Se isso é verdade (não podemos nos esquecer que eles são inocentes até que – e apenas se – a Justiça diga o contrário), ainda que não tenham descumprido um dos quatro deveres, e ainda que não tenham causado nenhum prejuízo ao Estado, poderão ser enquadrado em outro artigo (9o) da mesma Lei, que diz que é crime (e com penas mais severas) “auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego (...)”.
Assim como o art. 11, o art. 9o também contém uma lista de exemplos do que são vantagens patrimoniais indevidas (por exemplo, “receber, (…) dinheiro, bem (...) ou qualquer outra vantagem econômica, (…) a título de (...) presente de quem tenha interesse, (...) que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público” e “receber vantagem econômica de qualquer natureza (…) para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem”).
E como no caso do art. 11, esses são apenas alguns casos que, para o legislador, não há dúvida: são sempre crimes. Mas o "notadamente" deixa claro que o magistrado pode imputar enriquecimento ilícito oriundo de outros tipos de conduta.
Obviamente, há ainda a possibilidade de outros crimes, como corrupção passiva (e ativa, para quem ofereceu) e mesmo advocacia administrativa.