“Por unanimidade, STF decide a favor das cotas
As cotas raciais em universidades brasileiras são constitucionais, decidiram ontem, por unanimidade, ministros do Supremo Tribunal Federal.
Depois de dois dias de julgamento, prevaleceu a tese de que a reserva de vagas em instituições de ensino público busca a chamada ‘igualdade material’: a criação de oportunidades para quem não as tem em situações normais.
Ao final do julgamento, o relator do caso, Ricardo Lewandowski, disse que o STF "confirmou a constitucionalidade das ações afirmativas para grupos marginalizados como um todo". Ou seja, cotas sociais, por exemplo, também são constitucionais. A decisão, segundo ele, vale para todo o ensino público (…)
A decisão foi motivada por uma ação proposta pelo DEM contra o sistema de cotas adotado pela UnB (Universidade de Brasília) desde 2004, que reserva 20% de suas vagas para autodeclarados negros e pardos. Também oferece outras 20 vagas por ano para índios, cujo processo de seleção é distinto do vestibular.
A decisão ressaltou a necessidade de haver ‘proporcionalidade e razoabilidade’ na quantia de vagas e de prazos para as cotas, que devem durar o tempo necessário para corrigir as distorções sociais que pretendem solucionar.”
O STF não decidiu que as universidades são obrigadas a estabelecerem cotas. O que ele decidiu é que não é inconstitucional estabelecerem tais cotas, se elas decidirem faze-lo.
Mas a questão juridicamente interessante que ainda não foi respondida de forma objetiva (e que em algum momento gerará controvérsia) é qual é o limite da constitucionalidade. Em outras palavras, que tipos de cotas são inconstitucionais e quando é que uma cota inicialmente constitucional deixa de sê-lo?
Dois exemplos simples para ilustrar os futuros problemas:
Quando é constitucional?
Imagine que uma universidade pública resolva criar um sistema de cotas para homens brancos, ricos e heterossexuais. Isso seria constitucional? Essa cota agride nosso senso subjetivo de justiça porque homens brancos, ricos e heterossexuais dificilmente sofrem qualquer tipo de desvantagem social. Mas se pensarmos estatisticamente, eles são uma minoria. De cara, as mulheres são a metade da sociedade, o que faz com que homens sejam a outra metade. Se desses 50% retirarmos os não-brancos, os homossexuais e os de classe média e pobres, teremos um universo muito restrito. Ou seja, uma minoria. Mas uma minoria para quem o sistema de cotas não se justificaria em nosso senso subjetivo de justiça (a ‘razoabilidade’ mencionada na matéria).
Só que não há na decisão do STF parâmetros objetivos para dizer que cotas para essa minoria é inconstitucional (i.e., que não são razoáveis).
Os critérios para dizer quais cotas serão constitucionais e quais não serão não estão claros. Um problema específico foi resolvido e todos presumimos que outros problemas idênticos serão tratados da mesma forma pelo STF, mas ainda há um universo enorme de outras possibilidades similares - e nem tão similares - que não foram decidias. Tudo que sabemos é que deve ser proporcional e razoável, mas esses dois critérios são subjetivos. O que é razoável para mim, pode não ser para você.
Pense, por exemplo, em cotas para evangélicos, umbandistas, nordestinos, ciganos, deficientes físicos e mentais ou mesmo mulheres e homossexuais. São todos grupos que, historicamente, sofreram preconceitos e perdas sociais, laborais e econômicas. Podemos estabelecer cotas universitárias para eles? E, se sim, quais os limites? O que seria razoável? E se alguém cair em duas ou mais categorias ao mesmo tempo? Por exemplo, se for mulher e negra? Pode concorrer em duas cotas diferentes ou terá de se declarar ‘me sinto mais mulher do que negra’ e por isso só irá competir pelas cotas das mulheres? Ou teremos que criar uma terceira cota para 'mulheres negras' e não permiti-las concorrer pelas cotas nem de negros e nem de mulheres?
Quando deixa de ser constitucional?
Agora imagine um segundo exemplo: que todas as universidades públicas adotem um sistema de cotas para índios. Em consequência disso, os índios adquirem conhecimentos técnicos e descobrem seus direitos, e usam esses dois bens intelectuais para melhorarem de vida. Imagine que, graças a esse sistema de cotas, em 30 anos os índios finalmente estão em um patamar de vida tão bom quanto ou melhor do que o resto da população. Ainda seria justo manter um sistema de cotas para eles? Quando é que passa a ser inconstitucional manter um sistema de cotas para um grupo que antes poderia – e deveria - se beneficiar dele?
É difícil imaginar um exemplo com índios, mas imagine esse mesmo exemplo com judeus nos EUA: uma minoria que historicamente sofreu perseguição, preconceito, perdas econômicas e mesmo atrocidades, mas que hoje está acima da média em termos de riqueza e posicionamento social. Se uma situação como essa acontecer no Brasil para um grupo que tenha sido beneficiado por cotas, como deveremos trata-la juridicamente? E quais são os critérios exatos para dizer 'isso não é razoável'? Anos de cotas igual a anos de exploração? E a partir de quando isso seria contado? Desde a fuga do Egito? Ou seria melhor uso o PIB per capita? Ou o IDH é mais abrangente? Ou quando suas notas de vestibular se tornarem mais altas que as notas da média? Ou quando o salário médio pós-universidade for maior que o dos outros formandos? Enfim, isso também não foi definido pelo STF e é uma questão que, em algum momento, terá que ser respondida.
PS: Para quem gosta de fazer ginástica intelectual, os mesmos problemas acima existem para barreiras protecionistas na importação de produtos estrangeiros. Quando é que se justifica a criação de uma proteção ao produto nacional? E quando é que uma proteção legítima se torna ilegítima?