As recentes revoltas no Brasil têm causado confusão entre quatro elementos distintos, e essa confusão faz com que seu entendimento e consequente resolução se tornem mais difíceis.
Revindicações
Não está claro o que os manifestantes desejam. Sejam aqueles que foram e que continuam indo às ruas de forma pacífica, sejam aqueles que agiram e continuam a agir de forma criminosa.
Aqui há dois pontos a serem considerados.
O primeiro é que mesmo que aqueles que agiram de forma criminosa podem ter revindicações legítimas porque embora o método que escolheram seja inadequado, para não dizer criminoso, o que querem pode ser a expressão de um anseio ainda incompreendido de uma massa muito maior da sociedade, que ainda está silente, mas que pode não permanecer silente por muito tempo.
O segundo é que, sem compreender o que reivindicam, não podemos ponderar o que querem, como é possível atender tais anseios ou mesmo explicar por que não é possível atender seus anseios, se este for o caso. Enfim, sem conhecer seus objetivo, é impossível estabelecer um diálogo sensato.
A maior parte dos - se não todos os - esforços do aparato de inteligência estatal até o momento focaram na captura de informações sobre os participantes do movimento, suas redes de conexões pessoais e ideológicas, filiações institucionais e movimentação logística. Mas saber quem faz o quê, com quem, como, quando, e onde, não esclarece o que querem. Apenas nos habilita a reprimi-los. E sem saberem o que querem, todo o resto é inútil porque a repressão não é apenas economicamente ineficiente, mas operacional e socialmente insustentável a longo prazo.
A realidade é que ainda não respondemos essa pergunta mais básica e, sem ela, não sabemos sequer o grau de homogeneidade das revindicações. Estamos lidando com um grande grupo de revindicações iguais, similares ou que possam coexistir? Ou estamos lidando com revindicações opostas? A agenda de revindicações mudou desde o início das revoltas? Ou estamos lidando com revindicações de caráter puramente pessoal?
Até agora, estamos baseando nossos posicionamentos em suposições. E isso é inerentemente arriscado e ineficiente.
Reação
Não há dúvida que alguns protestos saíram dos limites da legalidade. Mas as reações dos governos muitas vezes foram não só desproporcionais, mas também ilegais e irracionais. Vale lembrar: dois erros não fazem um acerto. A ilegalidade dos manifestantes não legitima a ilegalidade estatal.
Proibir o uso de máscaras, tentar aplicar a lei de segurança nacional ou enquadrar participantes como membros de quadrilhas ou grupos criminosos organizados pode ser politicamente atraente a curto prazo como forma de mostrar que o governo está fazendo algo, mas inevitavelmente será frustrado juridicamente porque esbarram na ilegalidade. É tentar usar um marrete para consertar nosso delicado relógio democrático. E, pior, cria uma falsa dicotomia: ou se está do lado do manifestante criminoso ou do Estado autoritário. Felizmente, a maior parte da população não coaduna com nenhum desses dois extremos.
Não seria arriscado dizer que a maior parte da sociedade de fato divide muitos dos anseios e frustrações expressados pelos manifestantes e ao mesmo tempo deseja um Estado forte mas racional e equilibrado.
Ao exagerar na reação, o Estado acaba alienando uma parte enorme da sociedade que condena os excessos dos manifestantes nas ruas, porque ela condena ainda mais os excessos do Estado.
Remédios
A razão pela qual alguns governos excedem na reação e tentam soluções que são juridicamente inadequadas, é porque os instrumentos jurídicos que lhes foram disponibilizados pelo Congresso são ineficientes para lidar com o problema.
A punição para os principais delitos cometidos durante as manifestações, como o dano ao patrimônio público e privado, são assaz pequenas.
Mas não é só apenas o quantum da punição, mas a certeza de que ela ocorrerá, que diminui a criminalidade. E nossas leis processuais são, na melhor das hipóteses, leves, o que leva à sensação de que os excessos dos manifestantes não serão punidos.
Vale lembrar que o criminoso racional não pondera apenas a possibilidade de punição, mas sobretudo sua probabilidade. E as probabilidades no Brasil são exíguas porque as penas são baixas e a probabilidade de prescrição ou conversão da pena é quase uma certeza.
Se por um lado a tentativa dos governos afetados de usarem leis inadequadas tem um elemento de teatralidade política, é também o reflexo da ânsia de encontrar instrumentos mais severos que diminuam as probabilidades de prescrição ou conversão da pena.
Como em qualquer democracia, cabe ao Congresso prover leis balanceadas que possibilitem a punição adequada daqueles que desrespeitam a paz pública.
Raízes
Finalmente, precisamos entender que mesmo que compreendamos as revindicações, isso não significa que tenhamos compreendido e resolvido as razões que levaram os manifestantes às ruas.
E esse é talvez o ponto mais difícil de ser compreendido e resolvido, mas o que precisa de maior atenção porque, sem compreender e resolver essas raízes, poderemos até atender as atuais revindicações, mas será uma questão de tempo até que haja novas ondas de protestos por quaisquer motivos que sejam.
Por mais que seja admirável ver centenas de milhares de pessoas nas ruas expressando seus anseios, isso é econômica e socialmente ineficiente em uma democracia. Daí a razão de todos os países democráticos adotarem a democracia indireta.
Nem economia, nem democracia resistem a uma sociedade constantemente parada por conta de demonstrações. Sejam pacíficas ou não.
E temos que por o dedo na ferida: a principal - mas certamente não única - razão é que o parlamento ou não soube escutar seus representados ou os escutou mas se omitiu em agir a tempo naquilo que escutava. Como o parlamento não agiu como catalisador do pensamento da população, a população reagiu diretamente.
O parlamento precisa não só ouvir pro-ativamente seus representados, mas de fato agir de acordo com os anseios de seus representados.
Mesmo que a maior parte da população condene o vandalismo de alguns manifestantes, ela não coaduna com algumas práticas e omissões estatais. E enquanto a sociedade não se vir representar pelos parlamentos e polícias, haverá o impulso de irem às ruas, e isso abre a possibilidade de surgirem novas manifestações violentas, como ocorreu esse ano.
PS: abaixo parte das perguntas e respostas: