"Contrato de jato usado por Campos omite comprador
A proposta que selou a compra, por US$ 8,5 milhões (R$ 19 milhões), do jato que caiu com o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos (PSB) não cita nome nem informações sobre quem adquiriu a aeronave e não foi registrada em cartório.
O documento, obtido pela Folha, traz só uma assinatura ao lado do local e data da proposta de compra (Recife, 15 de maio de 2014), o que é inusual para um negócio de quase R$ 20 milhões.
O PSB tem repetido, por diversas vias, que os eventuais problemas são de quem comprou o jato, não do partido.
Há também a suspeita de que a venda foi apenas uma simulação para evitar que o uso da aeronave na campanha possa caracterizar o crime de uso de táxi áereo pirata (...)
'Contrato sem o nome do comprador não tem validade jurídica. É um contrato de gaveta', disse Luciano de Souza Godoy, professor de direito civil da FGV (Fundação Getulio Vargas) em São Paulo.
O documento, segundo ele, parece até ser falso para uma compra de US$ 8,5 milhões. 'Nunca vi alguém fechar um negócio desse valor com uma proposta sem o nome do comprador e sem registro em cartório', afirmou Godoy."
Para que haja um contrato é essencial a existência de ao menos cinco elementos. O primeiro é que haja uma proposta. Simplificando ao extremo, isso significa que não posso comprar sua casa se você não a coloca à venda. Essa proposta contém as condições da venda, como o preço a ser pago pelo comprador, quando a coisa será entregue ou o serviço prestado etc.
O segundo é que a proposta seja aceita. No exemplo acima, você não pode me forçar a comprar a casa se não aceito sua proposta de venda. Se, por exemplo, eu digo que só pagarei 90% do valor proposto por você, essa minha contraproposta é, do ponto de vista jurídico, uma nova proposta e caberá a você o papel de aceitá-la ou não. Se você disser que não venderá a casa por 90% do valor original mas que está disposto a aceitar 95% do valor original, você está fazendo uma nova proposta, e assim por diante.
O terceiro é que haja um objeto sobre o qual versa o contrato. No exemplo acima, o objeto é a compra e venda da casa. Bem poderia ser qualquer outra coisa que não seja proibida por lei e não ofenda a função social do contrato. Por exemplo, não posso fazer um contrato de compra e venda de seres humanos porque isso é ilegal e vai muito além dos limites da função social do contrato. O mesmo vale para venda de órgãos e tecidos humanos, por exemplo.
O objeto pode ser algo - uma coisa ou um fato - já em existência ou futuro. Mas o contrato precisa estar claro sob o seu objeto.
O quarto e quinto elementos são as partes contratantes. Para que um contrato se forme, é preciso que haja, no mínimo, duas partes. No exemplo acima, quem vende e quem compra a casa. Até que as partes estejam determinadas, é impossível haver um contrato porque não se sabe quem são os sujeitos das obrigações e direitos criados pelo contrato, ou mesmo se os contratantes podem criar tais direitos e obrigações. Por exemplo, não posso vender a casa que não é minha, e um incapaz não pode ser obrigado a vender sua casa.
Isso não quer dizer, contudo, que os contratantes são sempre os beneficiados do contrato. Em um contrato de seguro de vida, por exemplo, quem recebe o pagamento não é o contratante, que estará morto quando o dinheiro for pago pela seguradora, mas algum familiar, cônjuge ou amigo do contratante.
O contrato pode até estabelecer que uma das partes, mais adiante, poderá nomear uma terceira pessoa para adquirir os direitos ou assumir as obrigações nele contido. Mas ao menos duas partes estarão presentes no contrato desde o início.
Isso não quer dizer que todo contrato precisa ser escrito e assinado. Todos os dias de nossas vidas formamos dezenas de contratos verbais, todos válidos do ponto de vista jurídico. Todas a vezes que você compra um pão na padaria, ou pega o ônibus, ou abastece o carro ou vai ao restaurante, por exemplo, está formando e executando um contrato não escrito mas juridicamente válido.
Mas, mesmo em contratos verbais, os cinco elementos acima estão sempre presentes.
Logo, é impossível haver um contrato de compra e venda do que quer que seja sem saber quem é o comprador. No caso da reportagem acima, caberá à Justiça determinar se uma assinatura não autenticada e cujo nome da parte não pode ser inferido da assinatura é suficiente para se dizer que as partes contratantes estão identificadas.
Mas há um outro detalhe importante na reportagem acima e que complica ainda mais o caso. O 'contrato' termina dizendo que não é um contrato, mas uma carta de intenções.
Em transações comerciais complexas ou envolvendo grandes valores, é comum que haja contratos preliminares que estabelecem os requisitos essenciais do contrato principal a ser celebrado mais adiante.
Esses contratos preliminares criam um direito e obrigação de contratar mais adiante. Algo como 'nós assinaremos um contrato cujas bases são essas em até X dias a partir de hoje'. Como esse contrato preliminar é um contrato em si, ele vincula as partes. Se uma das partes se negar a celebrar o contrato principal no prazo determinado no contrato preliminar, por exemplo, a outra parte pode processá-la.
Segundo o Código Civil, o contrato preliminar precisa ser registrado. Isso é importante para que não se tenha meros contratos de gaveta. Com o registro, diminui-se a possibilidade de uma terceira pessoa ser prejudicada por uma transação a respeito da qual apenas as partes envolvidas tinham ciência até aquele momento.
Já na declaração de intenções não há uma obrigação de, mais tarde, celebrar o contrato ao qual ela se refere. Ela é uma mera declaração de quais são os elementos essenciais que as partes acordam desde o início das negociações. Embora ela não obrigue as partes a mais tarde celebrarem o contrato, ela protege as partes porque dá uma certa garantia de que não vão estar contratando advogados, contadores, banqueiros etc para ajudarem na negociação de um contrato cujos termos não têm a menor de chance de serem aceitos pela outra parte. Na declaração de intenções, as partes estão acordando os pilares essenciais que orientarão as negociações futuras. Algo como 'se você não concordar com isso, é melhor não perdermos tempo e dinheiro negociando todo o resto".