“Barbosa faz crítica a colegas e diz que STJ é 'órgão burocrático'
O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, criticou os colegas de corte e classificou o STJ (Superior Tribunal de Justiça) como um ‘órgão burocrático de Brasília’, por ter arquivado o caso do calouro de medicina da USP morto depois de um trote em 1999.
Durante a sessão de ontem, os ministros do STF analisaram a decisão tomada pelo STJ que, em 2006, arquivou uma ação contra os acusados de matar o estudante Edison Tsung Chi Hsueh por falta de provas, o que impediu o julgamento do caso.
Por 5 votos a favor e 3 contra -incluindo Barbosa-, os ministros do STF mantiveram a decisão do STJ. A discussão foi focada apenas numa questão técnica, sem entrar no mérito da morte do estudante, o que irritou o presidente do Supremo (…)
Para Barbosa, o STJ ‘violou a soberania’ do júri e, com isso, ‘violou abertamente’ a Constituição.
‘A quem incumbiria examinar se eles são ou não culpados? O tribunal do júri ou um órgão burocrático da Justiça brasileira situado em Brasília, o STJ?’, questionou.”
O presidente do STF se refere à soberania do tribunal do júri. Mas exatamente o que é isso e por que ele diz que alguns jurados lá na primeira instância – que sequer conhecem a lei – têm mais poder de decisão do que as duas cortes mais importantes do país (STF e STJ), formadas – ao menos em teoria – pelos juristas mais sábios do país?
A razão está lá na idade média e no início da idade moderna.
A maior parte do que hoje chamamos de países existia como um amontoado de feudos, cada um governado por um senhor feudal. Isso gerava dois problemas: as leis não eram aplicadas de forma uniforme e muitas vezes as próprias regras dentro de um mesmo reino não eram uniformes: cada senhor feudal (ou seus magistrados) fazia ou interpretava as regras de uma maneira diferente, e muitas vezes de forma injusta.
Para piorar a situação, os paisanos que habitavam em seus feudos não podiam sair de lá quando bem quisessem: eles ‘pertenciam’ àquele feudo. Mesmo em lugares – como no que hoje é os EUA – onde não houve feudalismo, as leis eram aplicadas de forma muito fragmentada e às vezes, injusta.
Óbvio que isso gerava enorme descontentamento entre aqueles submetidos a essa justiça instável.
Disso nasceu o tribunal do júri como uma das primeiras instituições democráticas: para garantir a justiça do julgamento, os acusados deveriam ser julgados por seus pares, e não por um senhor feudal ou quem quer que tivesse poder naquele território. Não importava que essas pessoas – os jurados – desconhecessem a lei ou não tivessem a mesma riqueza ou títulos ou ‘sabedoria’ dos juízes: suas decisões seriam consideradas decisões justas porque eram decisões vindas ‘do povo’.
Óbvio que quem teve seu poder de julgar tolhido (senhores feudais e juízes) não deve ter gostado muito da ideia. Mas a alternativa – o constante risco de uma revolta popular depois de cada julgamento, independente da decisão do magistrado – era muito pior. Deixando a decisão nas mãos ‘do povo’, esse risco diminuiria significativamente. Se eles absolvessem, ‘o povo’ não poderia dizer que o magistrado tentou proteger algum aliado pois, afinal, foram jurados representando ‘o povo’ quem absolveu. E o mesmo se o réu fosse condenado.
Bem, essa instituição perdurou ao longo dos séculos e existe até hoje.
No Brasil, ela julga apenas quatro crimes (os chamados crimes contra a vida: homicídio, infanticídio, aborto e o auxílio, indução ou instigação ao suicídio) quando o réu é suspeito de ter cometido o crime de forma intencional ou assumindo o risco de produzir a morte da vítima (dolo).
Dois aspectos interessantes do tribunal do júri é que, primeiro, embora haja sempre a possibilidade de uma apelação contra sua decisão, as cortes acima dele não podem decidir em seu lugar: elas podem apenas anular o julgamento e ordenar que um novo tribunal do júri julgue o caso novamente.
E, segundo, o tribunal do júri, ao contrário de todos os magistrados de todas as outras cortes (inclusive STF e STJ), não precisam explicar por que decidiram dessa ou daquela forma. Enquanto até o presidente do STF precisa explicar minuciosamente com base no que decidiu uma causa, os jurados nos tribunais do júri simplesmente dizem se determinado fato alegado por uma das partes é verdadeiro ou não, sem precisar explicar com base no que tomaram tal decisão.
A união dessas duas coisas – não precisar se explica e uma corte superior não poder julgar em seu lugar – é o que comumente chamamos de ‘soberania do tribunal do júri’.
E por que, então, o presidente do STF criticou o STJ? Porque, segundo ele, o STJ impediu que a morte do estudante fosse levada ao tribunal do júri para lá ser julgada.
As decisões do júri são soberanas (não podem ser mudadas pelas cortes superiores). Mas para que o tribunal do júri possa julgar e decidir, é primeiro necessário que o caso chegue a ele. E isso não aconteceu no caso acima (o caso foi arquivado). Daí a crítica do ministro do STF.