“Deputado enfrenta manifestantes e dá ordem de prisão
A Câmara teve ontem mais um dia de protestos, com tumulto e detenção de dois manifestantes contrários ao deputado e pastor evangélico Marco Feliciano (PSC-SP) -eleito no começo do mês presidente da Comissão de Direitos Humanos e acusado de homofobia e racismo.
Um dos manifestantes foi detido por tentativa de invasão do gabinete do deputado e outro, por ordem do próprio Feliciano, por insultá-lo.
‘Aquele senhor de barba. Chama a segurança. [Ele] me chamou de racista. Racismo é crime. Eu quero que ele saia preso daqui’, afirmou Feliciano, na direção do antropólogo Marcelo Reges Pereira, 35, que acabou sendo arrastado da sala por integrantes da Polícia Legislativa.
Alvo de protestos desde que foi eleito em razão de declarações polêmicas sobre gays e negros, Feliciano nega racismo ou homofobia (...)
Ontem, após a confusão, Feliciano proibiu a presença de manifestantes e comemorou ter conseguido terminar a sessão. ‘Conseguimos vencer uma barreira e mostramos que democracia é isso’".
Se lermos a matéria com cuidado, veremos que foi o próprio deputado quem definiu que ele foi ofendido. A matéria não diz que ele foi de fato ofendido pelo suspeito. Logo, o primeiro ponto é saber se de fato houve ofensa.
O segundo é saber - se houve ofensa - se ele foi injuriado ou caluniado. A diferença é importante pelo que virá logo a seguir. Ambos os crimes só são cometidos se quem disse tinha a intenção de ofender, e se a vítima sentiu-se ofendida. Mas é aí que suas semelhanças terminam e as diferenças começam.
Chamar alguém de racista é injúria. Dizer que alguém agiu de determinada forma que configura o crime de racismo é calúnia. Ficou confuso? Não se preocupe: quase todo mundo fica quando se depara com a diferença pela primeira vez. Mas é simples:
Na calúnia, o criminoso refere-se a uma conduta criminosa, a um fato (algo definido no tempo e no espaço). Por exemplo, eu digo que você matou Huguinho ontem noite. Matar alguém é um ato criminoso, e matar Huguinho ontem a noite é um fato.
Já na injuria, o criminoso imputa uma pecha ao ofendido. Essa pecha não precisa ser em relação a um crime. Por exemplo, chamar alguém de gordo ou vagabundo, com o intuito de ofender, é injúria (se a vítima sentiu-se ofendida, claro).
O terceiro ponto interessante aqui é que a calúnia possibilita a exceção da verdade. Exceção da verdade é, em bom português, o direito de o suspeito provar que o que ele disse é verdade. Se ele provar, não haverá calúnia.
No caso da matéria acima, se o manifestante disse que o deputado impediu alguém de exercer seus direitos devido a sua raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, ele terá cometido racismo. Mas se ele provar que o ofendido de fato impediu alguém de exercer seus direitos, não haverá crime.
Mas a exceção da verdade não existe no caso da injúria. Se você chamou alguém de gordo com a intenção de ofender, e quem foi chamado de gordo sentiu-se ofendido, não adianta você agora aparecer com uma balança para provar que o ofendido está acima do peso. Ainda que o ofendido seja obeso, haverá injúria.
A ideia por trás da injúria é que as pessoas não podem usar a verdade com a intenção de ofender. Temos que medir nossas palavras, ainda que seja para dizer o óbvio. Sua forma de escapar da acusação de injúria é mostrar que você não teve a intenção e não assumiu o risco de ofender: sua única intenção era reportar um fato, sem emoções ou segundas intenções.
Mas existe uma reviravolta interessante possível na matéria acima: dizer que alguém o caluniou ou injuriou pode ser uma calúnia.
Se eu digo que você me injuriou (ou caluniou) sem que isso seja verdade, eu o estou caluniando. Isso porque estou imputando a você um fato definido como crime.
No caso da matéria acima, se o deputado disse que o manifestante o injuriou sem que isso seja verdade (e cabe ao deputado provar a culpa do manifestante, e não manifestante provar sua inocência), o deputado terá cometido uma calúnia contra o manifestante, pois terá dito que ele cometeu um crime (injúria) sem que isso seja verdade, com a intenção (ou assumindo o risco de ofender o manifestante).
A situação complica-se ainda mais se o manifestante de fato não injuriou o deputado. Como a ordem de prisão ilegal terá partido do deputado, ele terá cometido abuso de autoridade.
'Ah, mas alguém lá no meio dos manifestantes gritou que o deputado era racista'. Não importa: assim como os torcedores de um time não são culpados porque um dentre eles atirou contra a torcida adversária, um manifestante não é culpado porque alguém gritou que o deputado era racista. Não existe culpa por osmoses. Para que o manifestante tenha culpa, ele precisa ter injuriado. E cabe ao deputado provar que foi ofendido pelo manifestante que mandou prender.
A dinâmica criada pelo deputado na matéria acima é complicada: nos crimes contra a honra cabe ao ofendido mover o processo contra o ofensor (e não ao Ministério Público). Logo, o deputado é quem deverá mover o processo se sofreu injúria (ou calúnia). E para mover o processo, não basta a palavra dele contra a do manifestante: o deputado (que é quem alega) precisará provar o que está alegando. Mas se ele resolver não levar o caso adiante, o manisfestante pode alegar que foi preso por injúria ilegalmente, o que geraria a possibilidade de processos tanto por calúnia quanto por abuso de autoridade contra o deputado.
Como o deputado poderia ter evitado mais essa dor de cabeça? Ele poderia simplesmente ter pedido para a segurança retirar o manifestante do local, sem ter dito que foi injuriado ou sem dar voz de prisão. A ordem de retirar alguém de dentro da sala de reuniões seria meramente administrativa, e não teria nada a ver com direito penal.