“O juiz da 35ª Zona Eleitoral de Campo Grande (MS), Flávio Saad Peron, expediu alvará de soltura nesta quarta-feira (26) para o diretor-geral do Google no Brasil, Fabio José Silva Coelho, detido hoje pela Polícia Federal em São Paulo por suspeita de crime de desobediência.
Coelho foi levado à sede da PF na capital paulista por ter infringido ordem judicial que determinava a exclusão do YouTube, site de vídeos do Google, de dois vídeos com ataques ao candidato a prefeito de Campo Grande pelo PP, Alcides Bernal.
A Justiça também determinou a suspensão, por 24 horas, do Google e do YouTube em Mato Grosso do Sul, o que não havia ocorrido até o início da noite desta quarta-feira. Segundo o juiz, a Embratel, citada para efetuar a suspensão dos sites, informou que enfrentava dificuldades técnicas para o cumprimento da decisão (…)
O vídeo em questão liga o candidato a prefeito a práticas como aborto, violência doméstca e embriaguez, além de mostrar supostas ações judiciais contra ele (…)
‘Em sendo uma plataforma, o Google não é responsável pelo conteúdo postado em seu site’, informou a empresa em comunicado”
Quando lidamos com direito todos os dias, passamos a achar que ele é a solução para tudo. Focamos tanto na árvore que nos esquecemos da floresta. Direito serve para resolver problemas e não como um fim em si mesmo.
Antes de pedirmos que determinada lei seja aplicada, devemos nos perguntar se sua aplicação resolve o problema que queremos ver resolvido. Vejamos o caso acima:
Vítima ou algoz?
Do ponto de vista do candidato ofendido, o vídeo, que era até então relativamente desconhecido, agora será conhecido por todos os eleitores do Estado e fora dele.
Se antes ele corria o risco de ter sua reputação manchada pelas alegações feitas no vídeo, agora também corre o risco de ser associado à prisão do executivo acima e se tornar ‘o cara contra a internet/liberdade de expressão’.
Pior: mesmo que o Google tire o vídeo do ar - ou o Google em si saia do ar -, agora que o vídeo se tornou mundialmente conhecido, ele estará disponível em milhares de outros sites além do Youtube. Não porque as pessoas sejam necessariamente contra as posições imputadas ao candidato no vídeo, mas porque elas são contra qualquer cerceamento ao que consideram seu direito de assistirem o que quiserem.
A melhor forma de espalhar uma notícia na internet é tentar impedir que isso aconteça. Pense no caso do topless da Kate Middleton: os advogados do casal não pediram que as fotos fossem removidas da internet. Eles sabem que isso é impossível e que a imagem do casal ficaria irremediavelmente prejudicada. Eles focaram em quem produziu as fotos e quem as comprou para veicular.
Como qualquer estudante de relações públicas sabe, ser o personagem de um vídeo ou foto degradante pode até ajudar a pessoa retratada se ela mostra que foi vítima de uma injustiça. Mas, ao partir para o ataque, ela pode rapidamente passar a ser vista como cerceadora da liberdade de expressão ou algo pior. Basta observar como a revolta contra o vídeo mostrando Maomé gerou o efeito contrário ao desejado: ao contra-atacarem, os muçulmanos saíram da posição de vítima e assumiram a de algoz.
Numa eleição, se o candidato de fato é contra ou a favor do aborto, ou contra ou a favor da liberdade de expressão, importa menos do que as aparências. E seus oponentes agora têm esse trunfo nas mangas.
Aparências não têm nada a ver com direito ou leis, mas é o verdadeiro xis da questão para o candidato ofendido.
Judiciário
Do ponto de vista do magistrado que mandou prender, ele tentou fazer a empresa entender que não se pode desrespeitar uma ordem judicial. Viveríamos em um mundo incerto se as ordens da Justiça fossem vistas como meras sugestões de conduta.
Mas por que devemos respeitar ordens judiciais? Não é pela ordem em si, mas pela instituição por trás da ordem. Se desrespeitarmos suas ordens, o Judiciário deixa de ser respeitado. Até aí, tudo bem.
Só que mandar prender alguém que será solto em seguida gera ainda mais descrédito em relação ao nosso Judiciário, tanto dentro como fora do país (esse tipo de decisão é geralmente associada a países como Irã e Coreia do Norte, e não a democracias).
Claro que quando um magistrado decide, ele não deve preocupar-se com a opinião do mundo ou do vizinho. Mas ele deve sempre analisar se há outras alternativas que alcancem resultado igual ou melhor, porque proferir decisões ineficientes vai contra os princípios elementares de justiça: justiça ineficiente é injustiça.
Por exemplo: se o problema é uma empresa que desrespeita sua ordem, o que é melhor: prender um de seus funcionários sabendo que ele será solto em seguida, ou aplicar uma enorme multa que doa no bolso da empresa?
Sociedade
Do ponto de vista da sociedade, milhões de pessoas inocentes ficarão impossibilitadas de usarem o serviço de buscas fornecido gratuitamente pela empresa. Isso afeta a economia do Estado, a educação de milhões de jovens, a produtividade das empresas etc. Pessoas que não têm qualquer envolvimento com a briga judicial em questão. Para a sociedade, essa é uma punição enorme, ainda que ela não tenha cometido qualquer erro. E para o Google - que vale US$ 246bi -, essa é uma punição que em nada lhe afetará.
As decisões acima não prejudicam quem de fato produziu o vídeo ou quem postou o vídeo ou quem se beneficiou com sua divulgação. Ou seja, não resolvem o problema.
Como diz o ditado, não devemos usar uma marreta para tentar abrir uma noz. Antes de usarmos o direito, devemos usar o bom senso, e nos perguntarmos qual caminho de fato resolve o problema.