“Procurador vê crime em honorário recebido por Márcio Thomaz Bastos
Um procurador regional da República no Rio Grande do Sul encaminhou ao Ministério Público Federal em Goiás representação pedindo investigação sobre a origem do dinheiro pago pelo empresário Carlinhos Cachoeira ao seu advogado, o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos.
Segundo o procurador Manoel Pastana, pode ter havido lavagem ou receptação culposa de dinheiro obtido por meio de crime. Ele cita reportagens que afirmam que Thomaz Bastos receberá R$ 15 milhões pela defesa de Cachoeira.
De acordo com o procurador, Cachoeira está com bens bloqueados e não tem renda para justificar os pagamentos.
O ex-ministro, por meio de nota, disse repudiar as ‘ilações’ do procurador e que o questionamento é ‘um retrocesso autoritário’ e uma ‘tentativa de intimidação’”
Esse é um ponto muito interessante e que levanta um debate sobre os limites de um advogado de defesa e da democracia. Mas primeiro precisamos entender o crime de receptação.
O artigo 180 do Código Penal diz que é crime “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”. Mas o ‘pulo do gato’ desse crime está no §3o, que diz que também é crime “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso”, que é a receptação culposa citada na matéria acima.
Em outras palavras, é receptador quem sabe que a coisa recebida é fruto de um crime ou quem, dadas as circunstâncias, deveria suspeitar. Dinheiro é coisa (é algo móvel, capaz de deslocamento físico). Logo, pode entrar na definição.
Saber é ter elementos suficientes para a formação de uma certeza. Se o ladrão diz está com um relógio que acabou de roubar e quer vendê-lo, se você comprá-lo, estará cometendo receptação. Há elementos suficientes para ter certeza que o relógio foi roubado.
Mas o receptador não precisa ter certeza: se o ladrão não diz nada, mas oferece o relógio por um valor muito abaixo do valor real, ou com a pulseira cortada, ou sem caixa ou manual de instrução, quem está recebendo o relógio pode até não saber que o relógio é fruto de um roubo, mas deveria suspeitar que ele é fruto de um crime porque relógios não são vendidos por valor tão baixo, sem caixa, pulseira ou manual de instrução.
Bem, se você é advogado e seu cliente diz para você que é um assaltante de banco ou traficante e te paga uma pequena fortuna para defendê-lo, você, em teoria, deveria ao menos suspeitar que está recebendo dinheiro que é oriundo de uma atividade criminosa, mesmo que ele não tenha dito que aquele dinheiro foi roubado ou pago pelo usuário. Logo, em teoria, é possível alegar que você está agindo como receptador do fruto do crime do assaltante ou traficante.
Mas alguns detalhes importantes aqui quando tentamos aplicar esse crime ao personagem da matéria acima:
Se a pessoa tem mais de uma fonte de renda, algumas lícitas e outras ilícitas, não é possível esperar que o advogado saiba ou suspeite que está sendo pago com dinheiro gerado pelas atividade ilícitas. O criminoso não coloca um carimbo de 'oriunda de crime' nas notas. Esse é um cenário diferente daquele no qual as fontes lícitas geram muito pouca renda e as fontes lícitas muita renda, e o advogado recebe um honorário que é visivelmente incompatível com o que é gerado licitamente; ou quando todos os bens lícitos foram bloqueados ou estão sob custódia da Justiça ou polícia.
Ademais, o personagem da matéria acima é suspeito de ser bicheiro. Jogo de bicho é contravenção penal e não crime. Receber os frutos de uma contravenção penal não se encaixa no crime de receptação. Precisa ser crime. Se ele for condenado por algum crime (sonegação ou lavagem de dinheiro, por exemplo), aí sim, é possível dizer que o dinheiro é fruto de crime.
Mas voltemos ao debate sobre democracia: para que haja democracia é necessário que haja o direito de defesa. E para que haja direito de defesa, é necessário que o réu tenha direito de contratar um advogado. Mas e se o único dinheiro que ele tiver é fruto de sua atividade criminosa? Isso quer dizer que ele não tem direito a uma defesa? Bem, ainda há advogados dativos (nomeados pelos magistrados para defenderem o réu de graça) e a defensoria pública (que existe justamente para defender quem não tem como pagar por um advogado privado). Logo, o problema não está aqui. O problema é que, levada às últimas consequências, os advogados teriam a obrigação de investigar todos os seus potenciais clientes e, pior, boa parte dos advogados se recusaria a aceitar clientes que podem vir a ser punidos por algo que o cliente não lhes disse.
Advogado não tem a obrigação de saber toda a verdade sobre seu cliente, mas apenas aquilo que o cliente lhe diz. É perigoso passarmos a punir advogados só porque não investigaram adequadamente seus clientes e ainda mais perigoso enfraquecer a relação cliente-advogado gerando a obrigação deste suspeitar daquele. Mas, ao mesmo tempo, é igualmente perigoso para a democracia deixar que uma classe de profissionais tenha uma desculpa permanente para receber bens de origem criminosa sob a alegação que têm uma relação protegida pela lei.
A solução? A sociedade ainda não encontrou uma satisfatória.