“Erro do Supremo livra réu de ser julgado pela corte
Um erro do STF (Supremo Tribunal Federal) livrou o réu Carlos Alberto Quaglia do julgamento do mensalão na corte. Para os ministros, Quaglia teve parte de sua defesa prejudicada por uma falha do setor administrativo do próprio STF, que, durante mais de três anos, notificou um advogado que havia sido excluído do processo pelo próprio réu.
Por unanimidade, os ministros decidiram desmembrar a parte do processo que trata de Quaglia e enviá-la para a Justiça Federal de Santa Catarina, onde recomeçará desde a fase em que foi detectado o problema”
Em 1925 o escritor Franz Kafka publicou um dos livros mais assustadores da história, chamado o processo. A história é simples: um homem – Josef K – é preso e processado. Mas como ele não sabe quais são as acusações contra ele, ele não tem como se defender.
A história virou uma expressão adjetiva (‘processo kafkaniano’) que até hoje serve para designar processos absurdos nos quais o acusado não tem como se defender, como os presos de Guantânamo ou dos gulags siberianos.
Para evitar processos kafkanianos, a lei brasileira diz que o réu deve ser informado do andamento do processo e do que existe contra ele. Daí a obrigação de ser citado e intimado. Se isso não for feito, o julgamento é nulo, ou seja, ainda que haja sentença ou acórdão, eles não têm validade jurídica. É com base nisso que a decisão de recomeçar o processo contra o réu acima foi tomada. Se ele continuasse sendo julgado, ainda que houvesse um acórdão contra o réu mais adiante, ele não teria validade jurídica porque o réu não teve o direito de se defender adequadamente.
O debate, contudo, gira em torno do que é formalismo para a proteção da democracia e o que é formalismo apenas pelo formalismo.
Formalismo apenas pelo formalismo é antidemocrático porque gera ineficiência da Justiça. Já o formalismo que serve para proteger a democracia é essencial. Impondo a obrigação de agir de certa forma impossibilita o agente público se esconder atrás de um poder discricionário. Dois exemplos simples: a obrigação de publicar a remuneração de servidores e a obrigação de submeter todas as pessoas presas pela Polícia Federal a exame médico. Essas duas formalidades existem para não possibilitar o mau servidor a se esconder. Como não dá para saber antecipadamente que servidor está ganhando mais do que deveria ou torturando o preso, a lei impõe a formalidade a todos. Dessa forma, ninguém escapa: nem o bom servidor, que não tem nada a temer, nem o mau, que abusaria de seu poder se não houvesse tal formalidade.
O problema das intimações judiciais entra na mesma lógica: para evitar que alguém sofra uma injustiça em um processo kafkaniano, impõe-se o dever de citar e notificar sempre.
Mas e se o réu sabe que há um processo contra si e simplesmente muda de advogado para tentar atrasar o processo? Tanto ele quanto seu novo advogado estão cientes do processo. Seria justo voltar à estaca zero apenas por conta de uma formalidade? À primeira vista, não.
Mas e se a Justiça foi devidamente informada mas foi ela quem se enrolou, como no processo acima?
Aqui, mais uma vez, o formalismo não existe apenas para proteger o réu, mas também para ‘desproteger’ o agente do Estado, balanceando seu poder. Ou seja, o formalismo não faz um juízo de valor se o réu agiu de forma correta ou incorreta: ele existe para não dar à autoridade pública meios de abusar de seu poder para cometer injustiças.
‘Mas os ministros do STF são honestos’. Como sabemos disso? Como sabemos que um delegado, prefeito, seu pai, filho ou vizinho é honesto? Nunca sabemos. É fácil ter certeza de que não são honestos, mas não de que são (aliás, repare que quando você pede um ‘nada consta’, ele não diz que você é honesto, ele diz apenas que não há nada que prove que você seja desonesto).
Para evitar ter de fazer esse tipo de pré-julgamento sobre cada servidor público, a lei impõe obrigações gerais. No caso das intimações, ela não quer saber se o magistrado está perseguindo o réu ou não. Impondo uma norma de conduta, ela diminui ou elimina a possibilidade de abusos por parte de maus magistrados.
Mas existe um detalhe ao qual é dada pouca atenção no Brasil, mas é um dos pilares da Justiça em outras democracias: o comportamento dos advogados em relação ao processo. Por exemplo, é possível fazer algo contra o advogado que deixa o processo correr sabendo que ele está viciado? A obrigação de intimar serve para proteger o réu, não o advogado. O advogado pode (e deve) usar o erro do tribunal contra o próprio tribunal para proteger o réu. Mas, deixar um processo correr para depois voltar à estaca zero em sua fase final gera um custo alto ao erário público e pode até gerar a prescrição do crime de um réu que deveria ter sido condenado. E quem causa um dano ao erário público ou obstrui o bom andamento da Justiça intencionalmente, tem a obrigação de ressarcir os cofres públicos ou pode mesmo sofrer um processo criminal. Mas quando se trata da conduta dos advogados, esse é um ponto no qual as leis (e a interpretação das leis) brasileiras ainda é ambígua. Isso porque, no Brasil, a primeira obrigação do advogado é para com seu cliente. Em algumas outras democracias, a primeira obrigação é para com a própria Justiça (daí que em alguns países - Inglaterra, por exemplo - advogados possam ser convidados a julgarem em um caso e voltarem a ser parte em um outro processo no dia seguinte).