“O Masp e a casa da sogra
Há duas semanas o ‘Estadão’ defendeu em seu editorial o cercamento do vão livre do Masp como forma de proteger o museu da ameaça de ‘viciados’, ‘traficantes’, ‘moradores de rua’ e ‘grupos de manifestantes’ que tomaram conta do espaço (...)
Não é à toa que o Masp se tornou um dos símbolos de São Paulo, além de um dos lugares mais apropriados pelos paulistanos. Poucos são os espaços da cidade que estabelecem uma relação tão bem-sucedida entre o público e o privado, a cultura, a arte e a vida cotidiana dos cidadãos (...)
Em filme de 1972, Lina Bo Bardi, autora do projeto, fala sobre o Masp: ‘[...] minha preocupação básica foi a de fazer uma arquitetura feia, uma arquitetura que não fosse uma arquitetura formal, embora tenha ainda, infelizmente, problemas formais. Uma arquitetura ruim e com espaços livres que pudessem ser criados pela coletividade. Assim nasceu o grande belvedere do museu, com a escadinha pequena. A escadinha não é uma escadaria áulica, mas uma escadinha-tribuna que pode ser transformada em um palanque. Eu quis fazer um projeto ruim. Isto é, feio formalmente e arquitetonicamente, mas que fosse um espaço aproveitável, que fosse uma coisa aproveitada pelos homens’”
Leis podem determinar que um espaço seja público , mas isso não transforma a relação dos indivíduos – nós – com aquele espaço. O espaço público só se torna de fato público quando o tratamos como público.
O espaço público é um espaço de convivência mútua. Não só o espaço no qual meus direitos estão restritos pelos direitos alheios, e vice-versa (isso também acontece nos espaços privados), mas no qual devemos ser especialmente vigilantes em relação à moralidade. Aquilo que, embora possa ser feito, não dever ser feito pois irá incomodar as demais pessoas.
Felizmente ou não, a lei não consegue regular nossa conduta moral. Ela pode proibir determinadas condutas consideradas imorais e até estabelecer instrumentos para vigiar e punir, mas o custo de vigiar e punir é muito alto. Nenhuma sociedade, por mais rica que seja, consegue disciplinar o uso dos espaços públicos através de leis e do aparato de segurança estatal. A única forma de usufruirmos dos espaços públicos é através da convivência harmônica, usando o bom senso para sabermos quando estamos incomodando ou invadindo o espaço alheio.
Não sujo a praia não porque o policial pode me flagrar, mas porque faço parte de uma sociedade na qual o outro tem o direito de usar uma praia limpa. E o mesmo vale para o som alto do carro, para a pichação nos muros, para a ordem na fila, o estacionar no passeio público, etc.
Quando essa arte da convivência falha, duas coisas acontecem ao mesmo tempo.
O espaço que deveria ser público passa a ser apropriado por uma parcela pequena da sociedade. Às vezes, por um único indivíduo. Ao estacionar na calçada, por exemplo, o motorista está se apropriando de um bem coletivo. Ao pichar o muro, o pichador está fazendo seu um espaço visual que é compartilhado por todos.
Mas enquanto o espaço é aproriado por uma pessoa, o custo social daquela apropriação é pago pela sociedade. O que os economistas chamam de externalidade. A sociedade inteira paga pela limpeza da sujeira deixada por quem deixou a latinha de cerveja na praia. O custo é coletivo, mas o benefício é individual. O mesmo ocorre com o som alto no carro ou com o carro na calçada: todos pagam o preço do incômodo causado por um único indivíduo.
Isso não quer dizer que todos pagam o mesmo preço. Às vezes, o custo acaba sendo pago mais por uma pessoa do que pelas demais, seja por vontade própria ou não. O dono do prédio pichado vai pagar mais do que todos aqueles incomodados pela pichação porque, afinal, será ele quem terá que pintar o muro. Ou pense nas varandas gourmets que vemos em anúncios de imóveis. Elas não são mais do que o custo pago pelo dono do imóvel pela ausência de espaços públicos seguros ou limpos (ou você já ouviu falar de varanda gourmet em país no qual há espaços públicos adequados?)
Mas disso aparece uma terceira consequência: ninguém gosta de ser o trouxa pagando a conta pelos benefícios alheios. Se vejo que estou pagando o preço para que outra pessoa se aproveite, vou querer também aproveitar. Se vejo alguém furando a fila, vou querer furar a fila antes. Se vejo alguém jogando lixo pela janela, vou jogar também. Afinal, por que respeitar a fila ou não jogar o lixo na rua se eu estou pagando o custo pelo desrespeito perpetrado por outros?
Mas, quanto mais eu faço isso, e quanto mais pessoas agem dessa forma, mais pessoas agirão dessa mesma maneira, até que todos tenhamos privatizado o espaço que deveria ser público. É o que os matemáticos chamam de teoria dos jogos. Como cada um de nós age egoisticamente, acabamos todos – individual e coletivamente – em uma situação muito pior do que se todos tivéssemos tentando conviver de forma respeitosa.