“Projeto quer vetar música que ofende as mulheres
(...) um projeto que tramita na Assembleia Legislativa causa polêmica no meio musical. A deputada Luiza Maia (PT) propõe que o poder público seja proibido de contratar artistas que ‘em suas músicas, danças ou coreografias desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres à situação de constrangimento’ (…)
‘Precisamos criar uma consciência na sociedade para que as pessoas repudiem esse tipo de arte. As mulheres não devem dançar ‘dando a patinha’, como diz um dos hits’.
Ela se refere à música ‘Me Dá a Patinha’, do grupo Black Style, cuja letra diz ‘Ela é uma cadela/Joga a patinha pra cima/Me dá, sua cachorrinha’. Outra música diz que ‘mulher é igual a lata, um chuta e outro cata’"
Ao contrário do que o título dá a entender, a matéria não diz que as músicas serão proibidas. O que será proibido é o governo contratar bandas que tocam esse tipo de música. São coisas bem diferentes e que geram consequências jurídicas (e democráticas) diferentes. Vamos entender:
Quando o estado proíbe que alguém faça um tipo de música, ele o faz na sua função pública, ou seja, como o gerente da sociedade, que diz o que podemos e não podemos fazer. A consequência disso é que ninguém poderia fazer as tais música e, por consequência, ninguém poderia ouvi-las. E esse tipo de proibição normalmente vem com uma sanção penal embutida: prisão, multa etc.
Esse é o caso, por exemplo, das drogas. O estado proibiu que a população consumisse drogas. Não importa o quanto algumas pessoas queiram consumi-la: está proibido. E se consumir, terá cometido um crime.
Foi isso que o título disse. Mas não foi isso que a matéria disse que está acontecendo. O projeto é, na verdade, para proibir o governo estadual de contratar bandas que toquem músicas que denigrem as mulheres.
A proibição só atinge o governo. É uma restrição que o governo impõem a si mesmo. O governo aqui não está agindo em sua função pública, mas em sua função privada, ou seja, como uma ‘empresa’ que pode contratar serviços, produzir bens, criar obrigações para si etc. Se eu ou você quisermos ouvir as tais músicas, ainda podemos. O governo não está proibindo que as músicas sejam gravadas, tocadas ou ouvidas. Ele está apenas dizendo que ele, como um consumidor de serviços, não poderá contratar bandas que toques esse tipo de música. Se uma empresa privada ou um individuo (eu ou você, por exemplo) quiser contratar tal banda para uma exibição pública ou privada, pode. Ninguém será processado por isso. Só o governo estadual é que não poderá. O governo não está restringindo o direito das pessoas, apenas os seus próprios direitos.
No primeiro caso (o da proibição das músicas) haveria um grande debate sobre liberdade de expressão etc. No segundo caso (na auto-proibição de contratação das bandas que tocam as músicas), o debate sobre a liberdade de expressão é bem mais ameno já que o governo não está proibindo que as bandas se expressem. Ele está dizendo apenas que, se denegrirem as mulheres em suas letras, o governo estadual não contratará seus serviços. É a mesma coisa que uma empresa privada faz quando diz que somente comprará produtos de produtores que tenham boas políticas sociais: ela diz quais seus parâmetros éticos.
Durante a maior parte da história humana os governos tentaram regular a conduta das pessoas através do primeiro mecanismo: a proibição e a criminalização. Mas nos últimos dois séculos, com o desenvolvimento do capitalismo moderno, os governos começaram a usar esse segundo mecanismo para estabelecer condutas desejadas. Ele não proíbe, mas diz que quem não se adequa pode sofrer consequências econômicas por perder o melhor e maior de seus clientes: o próprio governo.
PS: Para fazer um contraponto, compare o projeto de lei acima com esse projeto de lei (blog da Câmara, no dia 15/7/11): "A Câmara analisa o Projeto de Lei 384/11, do deputado Roberto de Lucena (PV-SP), que proíbe os meios de comunicação de veicular reportagens, artigos e informativos com ilustrações de caráter erótico. Pelo texto, esse tipo de material somente será permitido em publicações destinadas exclusivamente ao público adulto. Veículos que desobedecerem à lei ficarão sujeitos a multas de R$ 10 mil a R$ 100 mil. Os recursos arrecadados serão destinados ao Fundo Nacional de Amparo à Criança e ao Adolescente". Ambos os projetos de lei dizem respeito à preservação da imagem das mulheres, mas nesse segundo exemplo as emissoras seriam proibidas de veicular reportagens, artigos, imagens etc. Ou seja, o debate sobre restrições à liberdade de expressão e à própria democracia se torna muito mais acirrado.