Esse é um exemplo interessante para discutirmos uma das principais razões de existirem leis: regulamentar o uso da propriedade.
Quem comprou os ingressos e não compareceu está gastando seu dinheiro como deseja. Talvez tenha tanto dinheiro que comprou apenas por comprar, sem saber realmente se queria ou teria tempo de ir; talvez comprou e deu para quem não queria ir; talvez aconteceu um imprevisto de última hora. Não importa. O que importa é que ao comprar o ingresso e não comparecer duas coisas aconteceram: o lugar permaneceu vazio e alguém que gostaria de ir foi privado de comprar o ingresso.
O que fazer?
A solução mais óbvia é colocar alguém no seu lugar. Mas, nesse caso, o que fazer se o dono aparecer no segundo tempo? Podemos reembolsá-lo, mas ele não comprou o ingresso com o intuito de ser reembolsado: ele queria assistir as olimpíadas. Pode até parecer justo se ele comprou só por comprar. Mas e se o carro dele quebrou e ele chegou atrasado? Não dá para saber.
É isso que acontece, por exemplo, com a reforma agrária. Alguém comprou o terreno e de repente seu terreno é dado a outra pessoa. Ele pode até receber uma indenização, mas é justo privá-lo de um terreno pelo qual pagou só porque resolveu não usá-lo? E se fosse sua casa? E se fosse um cômodo de sua casa? Qual o limite?
No Brasil estamos mais acostumados com a ideia da reforma agrária ou da perda da propriedade, mas essa é uma ideia inconcebível em algumas outras democracias, como EUA e Reino Unido. Afinal, se você trabalhou ou teve sorte de nascer no útero certo, por que a lei deve tirar o que você comprou só porque você resolveu não usá-lo? Um dos direitos de ser dono de algo é não usar aquela coisa. A lei não tira sua casa de praia de você só por você nunca usá-la.
Outra alternativa é não vendermos os ingressos mas distribuí-los. Assim evitamos que quem tem muito dinheiro compre todos os ingressos, não compareça e prive as demais pessoas de assistirem os jogos.
Mas aí aparece um segundo problema: para quem dar os ingressos? Quais os critérios devem ser usados?
Era justamente assim que os países do bloco socialista faziam (e algumas ditaduras como Cuba e Coreia do Norte continuam a fazer). O problema é que as decisões passam a ser tomadas de forma subjetiva: eu distribuo o que é melhor para quem é meu amigo. E como a história tem mostrado, isso gera ineficiências na alocação de recursos.
Uma outra solução é vender apenas um ingresso por pessoa ou estabelecer algum outro tipo de limite, como o de preço. Isso acontece, por exemplo, quando há racionamento ou tabelamento de preços, como aconteceu várias vezes no Brasil na segunda metade dos anos 80. O problema com esse sistema é que impossibilitamos o produtor de se beneficiar de seu trabalho.
Se há pouca oferta e muita demanda, o preço vai aumentar. É justo impedir o dono de se beneficiar de um aumento desse preço? Afinal, a propriedade é dele. Como você se sentiria se o governo estabelecesse qual o valor pelo qual você pode vender sua casa?
Um segundo tipo de ineficiência criada nesse sistema é que ele remove o incentivo para o produtor produzir eficientemente. Pense nos medicamentos genéricos, por exemplo. Eles criam benefícios para os consumidores a curto prazo, mas a longo prazo podem criar um problema sério já que as empresas farmacêuticas, sem a proteção das patentes, podem parar de investir em pesquisa e desenvolvimento de produtos que temem não serem protegidos por futuras patentes. O resultado é que drogas cujas patentes podem ser quebradas (justamente aquelas que beneficiariam doenças prevalentes em países mais pobres) não são desenvolvidas.
Podemos ainda adotar uma outra alternativa: deixar com que o mercado se regulamente. É o que fazem os chamados países que praticam o capitalismo de livre mercado. A função das leis nesse caso é apenas punir quem tenta interferir com a liberdade de mercado e com a propriedade privada.
Mas aí aparece um outro tipo de problema: o mercado nem sempre cria resultados inteligentes e às vezes cria aberrações, como mostram as fotos acima. Pior: às vezes as pessoas descobrem maneiras de driblarem o mercado para se beneficiarem. Pense no rodízio de veículos, por exemplo. Em teoria a regra é a mesma para todos. Mas quem tem dinheiro para comprar dois carros consegue driblar as regras, o problema no trânsito continua e quem tem um único carro paga o pato.
Na tradição jurídica anglo-americana, a principal função da lei é proteger a propriedade privada contra a ingerência de terceiros (incluindo do governo). Nos países socialistas era proteger a propriedade coletiva (que, na prática, era também restrita às elites). O resto do mundo se espalha entre esses dois extremos. O que há de comum entre todos esses modelos é que uma das principais funções da lei (se não a principal) é regular e proteger a propriedade, seja de quem for, seja com que ideologia for.
E ainda não encontramos uma solução jurídica que seja realmente eficiente.
Mas isso não quer dizer que tudo está perdido: olhando alguns países desenvolvidos (os escandinavos, por exemplo) percebemos que a solução é menos jurídica e mais social: quando uma sociedade age como um grupo coeso, há menos necessidade de a lei dizer como a propriedade deve ser utilizada: a solução surge naturalmente das relações morais entre os indivíduos. Eu utilizo minha propriedade de maneira responsável não porque a lei me obrigue, mas porque não desejo perder o respeito de minha sociedade.