“Papel que assinei não valia nada, afirma Serra
Pré-candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo, José Serra minimizou ontem o fato de ter deixado o cargo de prefeito em 2006 mesmo tendo assinado um documento no qual se comprometia a cumprir todo o seu mandato.
‘Não era nada oficial’, disse, apenas ‘um papelzinho’.
Serra assinou o documento se comprometendo a permanecer à frente da Prefeitura de São Paulo por todo o seu mandato no dia 14 de setembro de 2004, em sabatina promovida pela Folha, diante de uma plateia de 300 pessoas (…)
Dois anos depois, em 2006, deixou a prefeitura para disputar o governo do Estado.
Ontem, em entrevista à rádio Capital, ele declarou: ‘Primeiro: eu não assinei nada em cartório. Isso é folclore. Houve um debate, uma entrevista. O pessoal perguntou: 'Se o senhor for eleito prefeito vai sair para se candidatar à Presidência?' Eu disse não. 'Então assina aqui.' Eu assinei um papelzinho. Não era nada’, afirmou”
Deixando a polêmica política de lado, a matéria acima levanta um ponto importante: sua assinatura em um documento privado tem valor?
A regra é simples: se você assinou, tem valor. Mas vale o que? Ele vale como confirmação física de sua vontade, pensamento ou que quer que seja. O que você pensa, só você sabe. O que você diz, perde-se no tempo e depende da memória das pessoas. Mas quando você assina um documento, ele deixa para a história o que você disse, e o que você disse é reflexo – ao menos na maior parte dos casos – do que você pensa e quer. E, muitas vezes, o que você diz cria direitos e obrigações para você e outras pessoas.
Logo, se você assina um documento, ele é a expressão de sua vontade e pensamento, e como tal, se sua finalidade é vincula-lo, ele o vincula.
Logo, se eu assino um documento falando que estou te vendendo minha coleção de camisetas de time de futebol, ele vale e cria direitos e obrigações para nós dois. Ele não precisa ser registrado em cartório e tão pouco precisa ser um documento que venha do governo. O beneficiado pelo documento pode utiliza-lo contra mim em um processo. E se eu assino um documento privado dizendo que não vou concorrer a uma eleição, ele também vale.
Se parece estranho, basta imaginar a situação inversa, ou seja, que todos os documentos precisassem ser assinados em cartório ou virem do governo para terem validade. Dezenas de milhões de contratos de trabalho, bilhões de contratos de compra e venda de pastel e coxinha, e trilhões de cartas de amor.
Pois bem, logo, o documento acima é válido, ainda que seja privado. Mas há quatro detalhes importantes:
Primeiro, alguns documentos só são válidos se forem preparados via cartório, como o contrato de compra e venda de um imóvel ou o contrato matrimonial (o documento através do qual você casa). Outros, como o testamento, podem ser privados ou via cartório, mas se forem privados, devem atender exigências mais complexas.
E isso nos leva ao segundo ponto: para que servem os cartórios. O cartório existe para dar presunção de validade aos documentos. Se sua assinatura está reconhecida em cartório, e você quer alegar que ela é falsa, você é quem tem que provar que ela é falsa. Mas se ela não está reconhecida em cartório, cabe a quem se beneficia do documento provar que ela é verdadeira, se quem assinou disser que a assinatura não é sua. Óbvio que em ambos os casos há apenas presunções e, como tais, há a possibilidade de provar em contrário.
Existe uma outra razão para que alguns documentos sejam feitos em cartório: para evitar bagunça. Algumas coisas – como a compra de uma casa ou um casamento – são tão importantes e criam direitos e obrigações tão profundos que a lei diz que só são válidos se seguirem determinados ritos. E o rito exige que seja feito via cartório. Pense em uma casa: você pode ter uma casa e não morar nela. Se a venda não for registrada em um cartório, qualquer pessoa poderia dizer que é dona da casa e vende-la para outra pessoa, causando um prejuízo enorme a você.
E aí entra o último ponto: esses ritos que exigem uma forma especial são a exceção. Isso significa que a lei precisa dizer claramente que tal contrato ou o que quer que seja só é válido se seguir determinado rito especial. Se ela não falar nada, presume-se que você pode expressar sua vontade como bem entender. Como a lei não diz que a venda de camisetas usadas ou declarações de que não pretende concorrer em novas eleições não precisam ser registradas em cartório, presume-se que qualquer ‘papelzinho’ assinado vale.
Mas existe mais um detalhe importante na matéria acima: se o candidato assina um pedaço de papel dizendo que não concorrerá a uma eleição, e depois decide concorrer, não se pode impedi-lo de concorrer baseado naquele pedaço de papel. Isso porque alguns direitos (públicos) são mais importantes que outros (privados). No caso, o direito à democracia é mais importante e, por isso, prevalece.
Existe mais um complicador: o tal do ‘pedacinho de papel’ assinado pelo candidato acima não dava direitos a ninguém. Era apenas uma declaração de vontade sem uma contrapartida ou qualquer valor econômico. É como uma carta dizendo ‘eu quero te namorar’: é apenas uma declaração de vontade que não dá direito a quem recebe-la vir me beijar ou segurar minha mão se eu mudar de ideia e resolver não mais namora-la. Como essa carta não deu direitos a ninguém, não há o que fazer depois que quem a assinou mudar de ideia. Em outras palavras, ainda que possa haver danos do ponto de vista político para quem desonrou sua assinatura, não há um dano do ponto de vista jurídico e por isso a Justiça não pode intervir.
A situação seria diferente se tal declaração desse direitos a outra pessoa. Algo como 'pagarei R$1 a tal pessoa se eu resolver abdicar de meu cargo para concorrer a outra eleição'. Agora, sim, há um direito econômico no qual a Justiça pode intervir se tal pessoa se sentir prejudicada.