“Por dez meses, as gêmeas siamesas Kauany e Keroly estiveram ligadas pelo fígado, estômago, intestino grosso e sistemas genital e urinário.
Também dividiam os mesmos órgãos genitais. Na última segunda, deixaram de fazer parte uma da outra.
As meninas foram separadas em uma complexa cirurgia que durou 12 horas e envolveu 20 profissionais-entre cirurgiões, anestesistas e enfermeiros- do ICr (Instituto da Criança) do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Venceram o segundo round da luta pela vida: 40% dos bebês que nascem grudados não resistem à separação. O primeiro, já havia sido ganho no útero: só 50% dos siameses nascem vivos. (…)
A mãe descobriu que esperava siamesas no quinto mês de gestação. ‘O médico disse que via apenas um corpo, três pernas e duas cabeças.
Na hora, pensei que fosse defeito do ultrassom’, lembra Selma, 32, também mãe de um casal de gêmeos de cinco anos e de um garoto de 11.
Gêmeos com esse tipo de anomalia são chamados isquiópagos (unidos pelos ísquios, ossos que apoiam o corpo) triplos (três pernas).
Na cirurgia de separação, a terceira perna, malformada, foi amputada. A pele serviu de enxerto para fechar o local da cirurgia. Cada uma ficou com um membro.
No futuro, Kauany e Keroly deverão usar próteses (pernas mecânicas). Também serão necessárias cirurgias reparadoras para o intestino (hoje, usam bolsa de colostomia), o reto e a vagina. Ainda não há prazo.
Segundo Selma, quando a anomalia foi diagnosticada, seu obstetra chegou a sugerir a interrupção da gravidez.
Católica, a mãe recusou a possibilidade. ‘Já tinha um amor imenso por elas.’ As meninas nasceram em Cuiabá, por meio de cesárea, no oitavo mês de gestação.
Começava ali um outro drama: separar ou não separar as filhas? Em ambas alternativas, havia risco de morte. 'Foi uma decisão muito difícil. Mas que tipo de vida elas teriam se continuassem grudadas?', dizia a mãe, chorando, ao entregá-las na porta do centro cirúrgico. A cena emocionou a todos.(…)
Estima-se que a prevalência de siameses seja de um a cada grupo de 100 mil nascidos vivos. Por essas projeções, nasceriam por ano no país 27 gêmeos nessa condição -a maioria morre. Segundo Tannuri, que é professor da USP, quando as crianças dividem órgãos vitais, como o coração, não é possível separá-las, e a morte é praticamente certa.
Kauany e Keroly têm corações independentes, mas havia uma ligação entre as cavidades pericárdicas-espaço que fica entre o músculo e o revestimento cardíaco.
A expressão ‘siameses’ vem de um famoso caso acontecido no Sião, Tailândia, em 1811. Chang e Eng nasceram colados pelo ombro. Os fígados eram ligados, mas as funções eram autônomas.
Aos 14 anos, os gêmeos foram vendidos pela mãe a um comerciante inglês, que os exibiam em circos. Aos 21, passaram a fazer shows por conta própria e se tornaram fazendeiros.
Nos EUA, casaram com duas irmãs e tiveram, juntos, 22 filhos. Morreram aos 63 anos. Primeiro Chang, dormindo. Três horas depois, o irmão, de ataque cardíaco.”
Essa matéria é bem interessante para entendermos, do ponto de vista jurídico, o que é uma pessoa.
Para o direito, a pessoa não é uma parte do corpo, mas o ente humano vivo. Quando alguém tem uma perna ou um braço amputado, essa pessoa não deixa de ser menos ‘pessoa’ do que era antes, e muito menos fazemos uma atestado de óbito para o membro amputado. A pessoa que perdeu o membro ainda está viva.
Mas, em um caso como de gêmeos xifópagos (siameses), há quantas pessoas do ponto de vista jurídico? Há apenas um corpo – às vezes com um único coração, às vezes um único par de pulmões ou um único fígado, intestino etc. Sem qualquer desses órgãos, uma pessoa morre. Logo, devemos considerar que há, antes da separação, apenas uma única pessoa?
Aqui é um daqueles espaços em que a lei deixa um espaço vago de propósito pois o legislador sabe que a medicina e a ciência estão quase sempre dois passos adiante. Há decisões que o magistrado vai ter de tomar usando o bom senso.
A lei não fala nada a respeito de gêmeos siameses e como eles devem ser tratados, mas se pensarmos com cuidado, veremos que não há grande diferença de alguém que vive com um coração artificial ou alguém que doa um rim ou a medula. No primeiro caso, a ausência de um órgão vital não faz com que o indivíduo deixe de ser considerado uma pessoa do ponto de vista jurídico. Se a ciência encontrou uma forma de mantê-la viva sem um órgão vital, por que a lei restringiria seus direitos?
No caso de alguém que doou um órgão, o doador não deixou de ser quem era (ainda que não tenha mais o rim que doou) e quem recebeu o órgão não adquiriu nenhum direito que pertencia a quem doou. Novamente, a lei não vai restringir o direito de alguém que está vivo graças aos avanços da medicina.
No caso dos xifópagos, acontece a mesma coisa: há dois indivíduos vivos (ainda que dividindo órgãos e conectados fisicamente) logo há duas personalidades jurídicas. Tente imaginar o raciocínio contrário, ou seja, se a lei só reconhecesse duas personalidades a partir da separação dos gêmeos. Seria o mesmo que dizer que o segundo indivíduo só nasceu com a separação. É óbvio que a separação não é a mesma coisa que o nascimento.
É por isso que, no caso dos xifópagos, ambas as pessoas terão seus direitos individuais, ainda que permaneçam conectadas para o resto da vida. Terão duas certidões de nascimento e carteiras de identidade, terão seus direitos individuais, sociais, econômicos, políticos e qualquer outro direito separados. Nada muda em termos de personalidade jurídica se, em algum momento a medicina conseguir separá-los. É por isso que podem se casar com pessoas diferentes e, se tiverem filhos, a relação de parentesco será com aquele que o gerou.
Se não forem separados – como no caso dos outros dois gêmeos apontados na matéria – quando um morrer, o outro ainda continuará com seus direitos, pois o direito do segundo indivíduo somente cessará com sua própria morte.
Enfim, a lei serve para proteger e não para prejudicar quem mais precisa de sua proteção.
Um último detalhe a respeito do assunto: quando ocorre a separação, é comum que um dos gêmeos fique com uma maior parte dos órgãos do que o outro, ou que um órgão mal formado seja eliminado (como o caso da terceira perna, na matéria acima). Nenhum dos dois gêmeos têm direito de processar o outro por ter ficado com menos órgãos. Isso porque a lei olha o bem jurídico mais valioso que, no caso, é a vida. É mais ou menos o mesmo raciocínio que impede o processo contra o médico que fez a cirurgia. Para tentar preservar a vida de um ou ambos os gêmeos, a lei autoriza o médico a fazer as escolhas que garantam a maior probabilidade de que um ou ambos permaneça(m) vivo(s). É o que em direito chamamos de exercício regular do direito. O medico às vezes tem de fazer escolhas difíceis em relação a integridade física de um indivíduo para tentar preservar um bem jurídico mais valioso do que o corpo: a vida. E é também por isso que o médico da matéria acima pode recomendar o aborto sem medo de ser processado: embora seja normalmente um crime, para proteger a vida da mãe o médico pode fazer o aborto.