“Boate no RS tinha equipamento necessário contra incêndios, dizem advogados
O escritório de advocacia Kümmel & Kümmel divulgou comunicado na noite deste domingo em nome da boate Kiss, atingida por um incêndio durante a madrugada. Na nota, a empresa Santo Entretenimento Ltda. manifesta o seu 'maior sentimento de dor e de solidariedade em decorrência da lamentável tragédia' (...)
A empresa diz lamentar a tragédia, 'que excedeu a toda a normalidade e previsibilidade de qualquer atividade empresarial', e credita o incêndio a uma fatalidade. 'Somente Deus tem condições de levar o consolo e o conforto espiritual que desejamos a todos os familiares e ao povo santamariense, gaúcho e brasileiro'”
Que foi fatalidade, disso não há dúvida: 231 até o momento, segundo o governo. Já os termos ‘previsibilidade’ e 'normalidade' foram usados com um propósito mais específico: excluir a responsabilidade civil da boate.
Quem causa um dano é obrigado a repará-lo. Uma morte ou uma lesão é uma tragédia, mas também um dano civil. Afinal, a morte ou incapacidade para o trabalho permanente ou temporária têm um efeito financeiro direto na vítimas e naqueles à sua volta.
Segundo nosso Código Civil (art. 932), “o empregador [é responsável pela reparação civil] por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”. Em outras palavras, as empresas por trás do dano também são responsáveis pela reparação. Daí a nota divulgada pela empresa. Se algo não é previsível, a pessoa (no caso, a boate) não pode ser responsabilizada. Se é previsível, a pessoa deve tomar as medidas razoáveis para sua prevenção. Se não tomou, pode ser responsabilizada se sua omissão causar um dano.
O problema da responsabilização civil se complica porque, segundo relatos, o fogo foi iniciado por um dos membros da banda que tocava no momento. E as mortes – ao menos várias delas, segundo relatos – foram causadas porque seguranças impediram que o público evacuasse a tempo.
Logo, temos dois ou três potenciais núcleos de responsabilidade, dependendo se ficar comprovado que suas ações ou omissões causaram parte ou todo o dano.
O primeiro núcleo seria boate em si ao permitir que alguém acendesse fogo dentro de sua instalações. É dever do dono do local - a boate - zelar pela segurança das pessoas que ali se encontram. Mas isso apenas se a ação e consequência pudessem ser previsíveis. Daí a nota citada na matéria acima.
O segundo núcleo é quem de fato iniciou o fogo. No caso, seria a banda. Afinal, se o dono do local tem a obrigação de impedir que alguém brinque com fogo no meio da boate, as pessoas que estão lá – pagando ou sendo pagas, não importa – têm também a obrigação de não exporem a vida e a saúde dos que ali estão. No caso, a banda pode ser responsabilizada civilmente pelo dano causado por um de seus integrantes, se ficar comprovado que sua ação causou todo ou parte do dano.
Por fim, há os seguranças. Se eles não são empregados da boate, mas terceirizados, a empresa que os emprega também pode ser civilmente responsabilizada pelas mortes e lesões que suas ações causaram. Novamente, desde que se comprove que suas ações causaram parte ou a totalidade do dano.
Então qual deles processar?
A resposta está no próprio Código Civil. Segundo ele, “se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação” (art. 942).
O Código (art. 948) diz que “no caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações [por exemplo, o que a pessoa ganharia ao longo de sua vida laboral]:
I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;
II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”
No caso de lesão ou ofensa à saúde (art. 949), “o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido” e (art. 950), “se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu”.
‘Ah, mas eles eram estudantes. Não trabalhavam. Por isso não deixaram de ganhar’. Errado. Estudante pode não ter um salário no momento de sua morte, mas ele estudava justamente para conseguir um emprego melhor e receber mais em sua futura vida profissional. Logo, o magistrado irá levar em conta sua expectativa de ganhos futuros. Por exemplo, usando o salário médio para aquela profissão ou outra forma que julgar adequada para o caso.
Existe ainda a possibilidade de reparação civil pelo município, se ele falhou em seu dever de fiscalizar. Afinal, alvarás e afins existem não apenas para gerarem burocracia e taxas, mas para garantirem que quem não está autorizado a funcionar não funcione.