“No início do próximo mês, a autônoma Alexandra Peixe dos Santos, de 38 anos, vai se deitar em uma mesa cirúrgica do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, para se submeter a um procedimento pouco comum, que deve durar duas horas. Do centro cirúrgico, sairá diferente: sem útero, ovários e trompas. Em data ainda a ser definida, passará pela extração das mamas. Os procedimentos constituem o passo mais contundente da transformação de Alexandra em Alexandre, ou Xande, primeiro transexual feminino do país a realizar uma cirurgia de mudança de sexo custeada pelo Sistema Único de Saúde – entre os homens, a prática existe desde 2008. Cada intervenção para retirada dos órgãos reprodutivos femininos (histerectomia total) e da mama (mastectomia) vai custar aos cofres públicos 717,90 reais e 462,80 reais, respectivamente.
Para Xande, a realização da cirurgia representa o último ato de uma peça ruim, em que ele – Alexandra faz questão de ser tratada pelo pronome masculino – encarna o personagem errado. ‘Desde criança, me entendo como menino’, diz. (...) Sem a devida orientação médica, acabou impondo mais dor ao corpo que queria transformar. ‘Tomei doses excessivas de hormônios e sofri dois derrames em menos de quinze dias’, diz.
Para a medicina, a cirurgia também é o desenlace de um drama. Em 1975, quando a primeira operação desse tipo veio a público, o médico responsável pelo feito, o cirurgião plástico Roberto Farina, chegou a ser condenado por lesão corporal grave, enquadrado no Código Penal Brasileiro. Quem quisesse se submeter ao procedimento, portanto, tinha de fazê-lo de forma clandestina, ou viajar a países com tradição no assunto, caso de Tailândia, Grã-Bretanha, Marrocos e Equador. Mas a demanda pelas intervenções fez com que os profissionais de saúde paulatinamente repensassem suas posições. Em 1997, a cirurgia foi reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina em caráter experimental. No ano seguinte, o urologista Carlos Cury, de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, realizou as primeiras operações: no mesmo dia, retirou o órgão genital de dois homens. Em 2002, a prática deixou de ser experimental. Por fim, em 2008, o Ministério da Saúde deu ao tema status de questão de saúde pública, ao assumir os custos da cirurgia de mudança de sexo entre homens e, no final do ano passado, entre mulheres. É o fim de um ciclo”.
Essa matéria é interessante para falarmos do vínculo entre medicina e o direito. Já falamos aqui do exercício regular do direito, que ocorre, por exemplo, quando o médico amputa uma perna ou o dentista extrai o dente do paciente. Óbvio que amputar a perna ou, como no exemplo da matéria acima, remover os órgãos sexuais de uma pessoa gera uma lesão. Essa lesão é chamada pelos juristas de gravíssima porque ela causa danos sérios e permanentes ao corpo da pessoa (art. 129, §2°, inciso III de nosso Código Penal). A pessoa nunca mais terá sua perna ou seus órgãos sexuais. E, como vimos quando falamos de exercício regular do direito, a única razão pela qual não haverá um processo contra o médico é porque ele agiu conforme previsto pelo direito.
Mas a lei penal não diz quais cirurgias fazem parte do exercício regular do direito e quais o extrapolam (ou seja, são puníveis). Juristas, obviamente, não entendem de medicina (ou você confiaria em seu advogado para fazer uma cirurgia?) Quem entende de medicina são os médicos. E é por isso que fica a cargo do órgão responsável por fiscalizar os médicos – o Conselho Federal de Medicina – determinar quais as cirurgias e procedimentos são permitidos, em quais circunstâncias e seguindo quais protocolos. É por isso que é tão importante para os médicos saberem se um procedimento é autorizado. Se algum médico começar a fazer experiências com seus pacientes sem seguir os protocolos necessários, ele poderá ser processado, como aconteceu com o médico do último parágrafo da matéria acima, em 1975.
Reparem que a matéria diz que de 1997 a 2002 a cirurgia era feita em caráter experimental. E o que é levado em conta para se autorizar cirurgias em caráter experimentais? Elementos éticos e os elementos técnicos. Do ponto de vista ético, precisa-se estar satisfeito de que o bem do paciente está sendo posto em primeiro lugar. Do ponto de vista técnico, é necessário que o procedimento seja capaz de gerar o resultado desejado e que ele não deve causar mal pior do que o problema que pretende resolver, ou seja, que no balanço das probabilidades, ele será benéfico ao paciente. Para quem se interessa pelo assunto, vale a pena ler os artigos 99 e seguintes do Código de Ética Médica.
No caso das cirurgias para alteração de sexo, foi a Resolução 1.482/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM) que autorizou que ela fosse realizada em caráter experimental:
“[O CFM] resolve:
1. Autorizar, a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo;
2. A definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
- desconforto com o sexo anatômico natural;
- desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
- permanência desse distúrbio de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
- ausência de outros transtornos mentais.
3. A seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico-psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios abaixo definidos, após dois anos de acompanhamento conjunto:
- diagnóstico médico de transexualismo;
- maior de 21 anos;
- ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia;
4. As cirurgias só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados à pesquisa.
5. Consentimento livre e esclarecido (...)”
Depois de cinco anos, em 2002, o CFM, com base nas cirurgias experimentais, finalmente aprovou a Resolução 1.652/02, que estabeleceu (a) que a cirurgia já poderia ser realizada em caráter não-experimental e (b) sob quais condições:
“[O CFM] revolve:
Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.
Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto:
1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º Que as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa.
Parágrafo 1º - O Corpo Clínico destes hospitais, registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica.
Parágrafo 2º - As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive contando com chefe, obedecendo os critérios regimentais para a ocupação do cargo.
Parágrafo 3º - A qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para a execução dos tratamentos.
Parágrafo 4º - Os hospitais deverão ter Comissão Ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 7º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido”.