Sempre subestimamos o sofrimento causado pela tortura. Essa é a conclusão do professor Loran Nordgren, da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, em entrevista exclusiva ao Pensando Direito.
Ao mesmo tempo, quase todos os países – e mesmo a ONU – usam a intensidade do sofrimento para diferenciarem a tortura das formas legítima de interrogatório. Mas como subestimamos o sofrimento, nos tornamos lenientes em relação à tortura.
Segundo o psicólogo, até mesmo métodos de interrogatório que aceitamos como legítimos seriam classificados como tortura se conseguíssemos conceber o grau de sofrimento real que geram no interrogado. Nordgren também comentou as sequelas da tortura em países como o Brasil. "Quanto mais nos distanciamos temporalmente, mais subestimamos o sofrimento".
Por que somos incapazes de compreender o sofrimento do torturado?
Existe um abismo entre o que a razão imagina que é a tortura e o que corpo e mente experimentam quando submetidos à tortura. É um fenômeno evolucionário que nos protege psicologicamente. É por isso que mulheres grávidas sempre subestimam a dor do parto.
Tampouco as pessoas têm memória emocional acurada. Mesmo quem já sofreu dor tende a subestimar o sofrimento do torturado. Você se lembra que ao se machucar sentiu dor e pode até comparar sua intensidade com outras dores que já sentiu, mas você não consegue se lembrar da dor em si. É mais um mecanismo de proteção evolucionário para que possamos continuar lidando com o presente. Os próprios torturados subestimam seu sofrimento depois do evento.
Outros dois fatores que influem é quão dissimilar são as formas de tortura em relação ao que já sofremos, e quão distante no tempo foram nossas experiências. Experiências recentes geram mais empatia. Mas é incrível como o esquecimento ocorre rápido: às vezes, é questão de horas.
Você vê diferença entre métodos tradicionais e as novas formas de tortura?
As novas formas de tortura – como waterboarding, privação de sono e isolamento – foram desenvolvidas justamente porque são tão abstratas. A maior parte das pessoas jamais as experimentaram. Por isso, somos absolutamente incapazes de conceber o grau de sofrimento que geram, o que gera menos repulsa social, enquanto as formas tradicionais – como queimaduras e cortes – são mais fáceis de serem concebidas. O que não quer dizer, contudo, que sejam concebidas com precisão: apenas significa que é mais fácil percebermos que geram sofrimento. Mas, o sofrimento é sempre maior do que imaginamos.
Haverá sempre um abismo entre percepção e realidade, mas ele é muito maior nas novas formas de tortura. Não podemos nos esquecer que as formas tradicionais de tortura serviam para instigar terror e assim coibirem comportamentos similares dos outros inimigos. A obtenção de informação era apenas secundária. Já as novas formas de tortura foram desenvolvidas justamente para evitar a percepção de sofrimento e, assim, não gerarem oposição social. Sua prioridade é a obtenção de informação.
Do ponto de vista do torturado, o sofrimento no momento da tortura é o mesmo. O que pode mudar são as sequelas após o ato. Do ponto de vista psicológico, as novas formas podem deixar marcas até piores, ainda que do ponto de vista físico deixem sequelas menores.
A tortura é efetiva?
Depende do que definimos como efetivo. Como não estamos preparados para a realidade do sofrimento, quando finalmente somos submetidos a ele, dizemos o que quer que o torturador queira. Mas isso não quer dizer que o que confessamos seja verdade. É apenas aquilo que achamos que o torturador quer ouvir para que ele cesse nosso sofrimento. Mas, por paradoxal que pareça, isso significa que as formas tradicionais de tortura, que tinham como objetivo principal coibir outros inimigos através do terror, eram mais efetivas que as novas formas, que visam obter informações. Elas obtêm informações, mas não necessariamente informações verdadeiras ou úteis. Apenas informações que cessam o sofrimento.
Qual o efeito da tortura no torturador?
Já apresentei meu trabalho para agências americanas e a resposta é sempre a mesma: ‘nossos agentes se submeteram aos novos processos de interrogatório. Eles sabem controlar o grau de sofrimento’. Mas isso não ajuda. Pelo contrário: eles não estão experimentando o sofrimento no momento em que estão interrogando. Eles apenas acham que sabem o que o interrogado está sofrendo, enquanto na realidade estão subestimando o sofrimento.
Além disso, você experimentar uma forma de tortura quando você está no controle da situação é muito diferente de quando você não tem qualquer controle dela. Boa parte do sofrimento causado pela tortura é gerado pela sensação de desamparo, de incapacidade. Novamente, isso serve apenas para fazer com que o torturador ache que está causando menos sofrimento do que de fato está.
Há pessoas que torturam sob pressão e sentem-se extremamente atormentadas com isso. Mas a maioria simplesmente se desumaniza: elas veem os torturados como uma espécie diferente, não humana, como animais incapazes de emoções. É surpreendente o número de pessoas que torturaram por anos e hoje vivem vidas normais, com famílias felizes, e não pensam no que fizeram.
É possível ter uma noção real do sofrimento causado pela tortura?
Não. Mesmo quando passamos por experiências similares apenas achamos que compreendemos o sofrimento de quem está sendo torturado. Nos esquecemos muito rapidamente do real grau de sofrimento.
A única coisa que podemos fazer do ponto de vista prático é lembrar as pessoas que elas estarão subestimando o sofrimento alheio e, por consequência, devem tomar cuidado quando ignoram a dor do outro, quando formulam leis, ou mesmo quando lidam com o passado.
Há culturas mais predispostas a aceitar a tortura?
As democracias ocidentais parecem mais propensas a taxarem tortura como algo errado, enquanto em ditaduras é natural a percepção de que seja algo justo - se você tenta minar o governo, você merece ser punido fisicamente. Mas, de forma geral, todos condenamos tortura. O que é diferente é a definição do que é tortura. Nas ditaduras as pessoas tendem a subestimar ainda mais o sofrimento causado pela tortura e, por isso, aceitam-na mais facilmente simplesmente porque ela passa a ser um fato cotidiano. Nos insensibilizamos. Daí ela se proliferar com maior facilidade
Como países que viveram sob ditadura, como o Brasil, podem lidar com as sequelas da tortura?
Quanto mais nos distanciamos temporalmente, mais subestimamos o sofrimento. É difícil para o torturado compreender porque a sociedade não entende seu sofrimento e, com o tempo, fica mais difícil para a sociedade compreender a dor do torturado. É importante que ambas as partes saibam que esse abismo existe e se alarga com o tempo.
Além disso, é importante saber que há enorme sentimento de culpa no torturado que confessou. Ele próprio às vezes não compreende por que confessou já que acha que sofreu menos do que de fato sofreu. Encarar o passado de frente é uma forma de ajudar essas pessoas a aceitarem seu próprio comportamento.
Ao mesmo tempo, quase todos os países – e mesmo a ONU – usam a intensidade do sofrimento para diferenciarem a tortura das formas legítima de interrogatório. Mas como subestimamos o sofrimento, nos tornamos lenientes em relação à tortura.
Segundo o psicólogo, até mesmo métodos de interrogatório que aceitamos como legítimos seriam classificados como tortura se conseguíssemos conceber o grau de sofrimento real que geram no interrogado. Nordgren também comentou as sequelas da tortura em países como o Brasil. "Quanto mais nos distanciamos temporalmente, mais subestimamos o sofrimento".
Por que somos incapazes de compreender o sofrimento do torturado?
Existe um abismo entre o que a razão imagina que é a tortura e o que corpo e mente experimentam quando submetidos à tortura. É um fenômeno evolucionário que nos protege psicologicamente. É por isso que mulheres grávidas sempre subestimam a dor do parto.
Tampouco as pessoas têm memória emocional acurada. Mesmo quem já sofreu dor tende a subestimar o sofrimento do torturado. Você se lembra que ao se machucar sentiu dor e pode até comparar sua intensidade com outras dores que já sentiu, mas você não consegue se lembrar da dor em si. É mais um mecanismo de proteção evolucionário para que possamos continuar lidando com o presente. Os próprios torturados subestimam seu sofrimento depois do evento.
Outros dois fatores que influem é quão dissimilar são as formas de tortura em relação ao que já sofremos, e quão distante no tempo foram nossas experiências. Experiências recentes geram mais empatia. Mas é incrível como o esquecimento ocorre rápido: às vezes, é questão de horas.
Você vê diferença entre métodos tradicionais e as novas formas de tortura?
As novas formas de tortura – como waterboarding, privação de sono e isolamento – foram desenvolvidas justamente porque são tão abstratas. A maior parte das pessoas jamais as experimentaram. Por isso, somos absolutamente incapazes de conceber o grau de sofrimento que geram, o que gera menos repulsa social, enquanto as formas tradicionais – como queimaduras e cortes – são mais fáceis de serem concebidas. O que não quer dizer, contudo, que sejam concebidas com precisão: apenas significa que é mais fácil percebermos que geram sofrimento. Mas, o sofrimento é sempre maior do que imaginamos.
Haverá sempre um abismo entre percepção e realidade, mas ele é muito maior nas novas formas de tortura. Não podemos nos esquecer que as formas tradicionais de tortura serviam para instigar terror e assim coibirem comportamentos similares dos outros inimigos. A obtenção de informação era apenas secundária. Já as novas formas de tortura foram desenvolvidas justamente para evitar a percepção de sofrimento e, assim, não gerarem oposição social. Sua prioridade é a obtenção de informação.
Do ponto de vista do torturado, o sofrimento no momento da tortura é o mesmo. O que pode mudar são as sequelas após o ato. Do ponto de vista psicológico, as novas formas podem deixar marcas até piores, ainda que do ponto de vista físico deixem sequelas menores.
A tortura é efetiva?
Depende do que definimos como efetivo. Como não estamos preparados para a realidade do sofrimento, quando finalmente somos submetidos a ele, dizemos o que quer que o torturador queira. Mas isso não quer dizer que o que confessamos seja verdade. É apenas aquilo que achamos que o torturador quer ouvir para que ele cesse nosso sofrimento. Mas, por paradoxal que pareça, isso significa que as formas tradicionais de tortura, que tinham como objetivo principal coibir outros inimigos através do terror, eram mais efetivas que as novas formas, que visam obter informações. Elas obtêm informações, mas não necessariamente informações verdadeiras ou úteis. Apenas informações que cessam o sofrimento.
Qual o efeito da tortura no torturador?
Já apresentei meu trabalho para agências americanas e a resposta é sempre a mesma: ‘nossos agentes se submeteram aos novos processos de interrogatório. Eles sabem controlar o grau de sofrimento’. Mas isso não ajuda. Pelo contrário: eles não estão experimentando o sofrimento no momento em que estão interrogando. Eles apenas acham que sabem o que o interrogado está sofrendo, enquanto na realidade estão subestimando o sofrimento.
Além disso, você experimentar uma forma de tortura quando você está no controle da situação é muito diferente de quando você não tem qualquer controle dela. Boa parte do sofrimento causado pela tortura é gerado pela sensação de desamparo, de incapacidade. Novamente, isso serve apenas para fazer com que o torturador ache que está causando menos sofrimento do que de fato está.
Há pessoas que torturam sob pressão e sentem-se extremamente atormentadas com isso. Mas a maioria simplesmente se desumaniza: elas veem os torturados como uma espécie diferente, não humana, como animais incapazes de emoções. É surpreendente o número de pessoas que torturaram por anos e hoje vivem vidas normais, com famílias felizes, e não pensam no que fizeram.
É possível ter uma noção real do sofrimento causado pela tortura?
Não. Mesmo quando passamos por experiências similares apenas achamos que compreendemos o sofrimento de quem está sendo torturado. Nos esquecemos muito rapidamente do real grau de sofrimento.
A única coisa que podemos fazer do ponto de vista prático é lembrar as pessoas que elas estarão subestimando o sofrimento alheio e, por consequência, devem tomar cuidado quando ignoram a dor do outro, quando formulam leis, ou mesmo quando lidam com o passado.
Há culturas mais predispostas a aceitar a tortura?
As democracias ocidentais parecem mais propensas a taxarem tortura como algo errado, enquanto em ditaduras é natural a percepção de que seja algo justo - se você tenta minar o governo, você merece ser punido fisicamente. Mas, de forma geral, todos condenamos tortura. O que é diferente é a definição do que é tortura. Nas ditaduras as pessoas tendem a subestimar ainda mais o sofrimento causado pela tortura e, por isso, aceitam-na mais facilmente simplesmente porque ela passa a ser um fato cotidiano. Nos insensibilizamos. Daí ela se proliferar com maior facilidade
Como países que viveram sob ditadura, como o Brasil, podem lidar com as sequelas da tortura?
Quanto mais nos distanciamos temporalmente, mais subestimamos o sofrimento. É difícil para o torturado compreender porque a sociedade não entende seu sofrimento e, com o tempo, fica mais difícil para a sociedade compreender a dor do torturado. É importante que ambas as partes saibam que esse abismo existe e se alarga com o tempo.
Além disso, é importante saber que há enorme sentimento de culpa no torturado que confessou. Ele próprio às vezes não compreende por que confessou já que acha que sofreu menos do que de fato sofreu. Encarar o passado de frente é uma forma de ajudar essas pessoas a aceitarem seu próprio comportamento.