Hoje vamos entender por que algumas pessoas acreditam que a redemocratização gerou a violência.
O principal erro é confundir correlação com causalidade. Correlação é quando duas coisas acontecem de forma sincronizada, mas uma não causa a outra. Causalidade são duas coisas que acontecem ao mesmo tempo, onde uma causa a outra.
O gráfico abaixo, por exemplo, é baseado nos dados do Mapa da Violência dos Jovens no Brasil em 1998, feito pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfiz.
Mas se olharmos o gráfico com atenção, veremos que esse não foi um fenômeno nacional. Duas das regiões (Centro-Oeste, em laranja; e Sul, em roxo), tiveram uma queda na taxa de homicídios por 100 mil habitantes nos cinco anos após a ditadura.
A ditadura, que terminou em 1985, era nacional. Ora, se a ditadura era nacional, como é que se explica a queda em duas das cinco regiões?
Não se explica porque as duas coisas aconteceram ao mesmo tempo, mas uma não causou a outra.
Para complicar, no caso específico democracia-violência, não há sequer evidência que uma está correlacionada à outra, ou seja, que elas têm uma mesma causa. Pode ter sido simplesmente uma coincidência que as duas coisas aconteceram ao mesmo tempo.
Atribuir o aumento da violência ao fim da ditadura é o que chamamos de lógica indutiva: parte-se de algumas evidências para se chegar a uma teoria.
Um exemplo dos perigos de se usar a lógica indutiva: durante a peste negra, na Idade Média, as cidades mais populosas foram as mais afetadas. Mas eram também onde a maior parte dos judeus viviam. Usando a lógica indutiva, os radicais locais chegaram à conclusão de que os judeus é que causavam a peste. Logo, passaram a perseguí-los. A verdadeira causa - os ratos - continuou sem solução.
Usando essa mesma lógica indutiva, poderíamos dizer que a violência no Brasil não foi causada pelo fim da ditadura, mas pelo Programa do Jô. Ele estreou como entrevistador em 1988. Na década que se seguiu a violência aumentou. Ou talvez a causa tenha sido o tamanho das bermudas usadas pela seleção de futebol brasileira: entre 1982 e 1994 elas aumentaram significativamente de tamanho. Assim como a violência.
Se esse raciocínio parece absurdo é porque ele de fato é absurdo. Não faz sentido.
A causa da violência não é tão fácil de ser identificada, e quase nunca há uma causa: há várias. E causa e consequência às vezes estão separadas por anos ou décadas. No livro Freaknomics, por exemplo, os autores mostram estatisticamente que uma das causas da queda da violência em Nova York na década de 90 foi a legalização do aborto duas décadas antes: crianças que cresceriam abandonadas ou em lares fragmentados, e cuja a probabilidade de se envolverem em crimes depois de adultas seria maior simplesmente deixaram de nascer.
E, por outro lado, uma causa hoje pode continuar a gerar consequências por décadas, ainda que a causa já não exista. Uma das consequências de tantos homens terem morrido nas duas guerras mundiais, por exemplo, foi a entrada das mulheres no mercado de trabalho, nas universidade, no processo eleitoral etc. Os efeitos dessa emancipação perduram até hoje, mesmo que a Segunda Guerra tenha terminado em 1945.
O mesmo ocorre com a violência. Crises financeiras nas décadas de 80 e 90 podem ter contribuído para o aumento da violência (crises, aliás, que tiveram como uma das causas o aumento do endividamento externo ocorrido nas décadas de 1960 e 1970). Ou pode ter sido o aumento de consumo de drogas, ou seu barateamento, ou o sucateamento das polícias, ou o aumento das populações urbanas, ou a queda na mortalidade infantil, ou o aumento do consumo de açúcar, ou a popularização da TV, ou o número de divórcios, ou a distribuição de renda, ou a banalização da violência feita por programas policiais. E assim vai.
O fato é que identificar causas específicas para aumento ou queda de violência não é uma tarefa tão trivial quanto parece. E mesmo que seja possível identificar as causas, controlar os efeitos pode ser igualmente complicado. O que causa a diminuição de um tipo de violência pode aumentar outro tipo. A proibição do uso de armas de fogo, por exemplo, pode diminuir um tipo de homicídio (com uso de arma de fogo), mas aumentar outro (com uso de arma branca). O combate a um tipo de drogas pode gerar o aumento no consumo de outro tipo.
O perigo de usar lógica indutiva para atribuir as causas da violência à democratização é que podemos acabar optar pela ditadura não porque gostemos da ideia de viver sob uma ditadura, mas porque achamos que isso resolverá o problema da violência, o que não é verdade.
Se vamos optar por defender regimes de exceção, devemos fazê-lo por boas razões, e não porque nos deixamos induzir por uma lógica falha.