"Em uma nova escalada da crise gerada pelo escândalo do uso de grampos ilegais no tabloide britânico "News of the World", o chefe da Polícia Metropolitana de Londres (a Scotland Yard), Paul Stephenson, renunciou ontem.
O anúncio veio poucas horas após a prisão de Rebekah Brooks, que era editora do 'NoW' na época em que os grampos teriam ocorrido.
Stephenson está sob suspeita de manter laços com Neil Wallis, que trabalhava no 'NoW' desde 2003. A maior acusação paira sobre o fato Wallis ter sido contratado como consultor de relações-públicas da polícia por um ano, o que durou até setembro do ano passado (...)
Ontem, a imprensa britânica informou que Stephenson teria passado algumas semanas em um spa de luxo, com as despesas pagas por um jornalista. A polícia diz que a fatura foi paga pelo gerente do hotel, mas não explica por que o policial recebeu o presente.
Há ainda a suspeita de que o tabloide pagaria propina à polícia por informações e para que ela não se esforçasse para investigar as denúncias de escutas telefônicas ilegais."
E em uma outra reportagem logo a seguir:
“Seis sacos plásticos cheios passaram quase quatro anos empilhados em uma sala de provas da Scotland Yard.
Dentro deles havia um tesouro de evidências: 11 mil páginas de anotações manuscritas trazendo listas de quase 4.000 celebridades, políticos, atletas, policiais e vítimas de crimes cujos telefones podem ter sido grampeados pelo ‘News of the World’.
No entanto, segundo altos funcionários da polícia, entre agosto de 2006, quando os objetos foram apreendidos, e 2010, ninguém na Polícia Metropolitana (Scotland Yard) se deu ao trabalho de estudar o material (…)
Os depoimentos e as novas provas que vieram à tona, além de entrevistas com funcionários atuais e anteriores da polícia, dão conta de que a Scotland Yard e a News International que publicava o ‘NoW’, extinto há uma semana, e é a subsidiária britânica da News Corporation, de Rupert Murdoch, acabaram se misturando a ponto de compartilharem a meta de barrar a investigação (…)
Executivos e outros profissionais da empresa também mantinham vínculos estreitos com altos escalões da Scotland Yard. Sir Paul Stephenson teve 18 almoços e jantares com executivos e editores da firma durante a investigação, sendo oito com Wallis”
Existe algo muito interessante aqui e que é relevante para nós no Brasil: se o jornal inglês dava qualquer vatagem (dinheiro, almoços etc) para obter favores da polícia, ele pode ter cometido um crime pela lei americana.
O jornal que subornou para obter as informações era inglês, mas a empresa que é dona do jornal é americana. E é aí que as coisas se complicam:
Segundo o Anti-Bribery and Books & Records Provisions of The Foreign Corrupt Practices Act que é a Lei Americana Anti-Corrupção no Exterior (§78, em português aqui), uma empresa americana não pode pagar propina a servidores públicos de outro país. Qualquer país, incluindo o Brasil. Qualquer vantagem ou pagamento indevido que vise obter (ou mesmo evitar a perda de) negócios, ou que dê uma vantagem indevida sobre outros competidores (outros jornais, por exemplo) é considerado um crime. E, segundo a matéria acima dá a entender, é isso que pode ter acontecido. E isso vale tanto para empresas americanas operando na Inglaterra quanto no Brasil.
Pela lei americana, as penas chegam a US$2 milhões, e quem efetivamente pagou ou autorizou o pagamento ou de alguma forma estava envolvido pode receber multas que chegam a US$250 mil e 5 anos de prisão. Se houve também adulteração de livros contábeis, as multas sobem para U$25 milhões e US$5 milhões, respectivamente, e a pena de prisão pode chegar a 20 anos.
Essa é uma lei muito interessante porque ela é bem abrangente. Não importa que quem pagou tenha sido a subsidiária: como ela pertence à matriz americana, ela ainda assim está submetida àquela lei.
E ela vai mais além: para que a empresa americana não tente se esquivar sub-contratando outras pessoas para efetuarem os pagamentos, ela também pune os pagamentos feitos por terceiros (marqueteiros, consultores, lobistas etc) em nome da subsidiária ou da matriz.
E ela não é só aplicável às empresas americanas: ela abrange qualquer empresa que tenha ações (ADRs) negociadas em bolsas nos EUA.
E o pagamento ilegal não é só a servidores públicos (como policiais, na matéria acima, ou políticos): inclui candidatos a cargos eletivos e até a partidos políticos.
Assim, um brasileiro que trabalha para uma empresa brasileira que tenha ações na Bolsa de Nova York e que contrate uma empresa de publicidade brasileira que dê um fim de semana em um hotel no Brasil de graça para um deputado brasileiro com a finalidade de convencê-lo a dar uma vantagem econômica à empresa brasileira poderá, sim, ser processado por violar essa lei norte-americana, ainda que o deputado não tenha conseguido fazer o que a empresa queria. A mesma coisa acontecerá se foi uma empresa de relações públicas brasileira contratada pela subsidiária brasileira.
Óbvio que, como é uma lei americana, ela será aplicada pela justiça americana, e não pela justiça brasileira. Logo, se foi um brasileiro quem corrompeu, ele será julgado pela justiça americana. Se ele fez isso no Brasil, ele precisaria ser extraditado para os EUA para ser julgado lá. E como o Brasil não extradita brasileiros, ele estaria protegido, certo?
Não. Existem três detalhes:
Primeiro, tão logo ele entre no território nacional americano ele poderá ser preso. A mesma coisa acontece se ele estiver em aeronave ou embarcação sob bandeira americana em águas internacionais.
Segundo, quase todos os países desenvolvidos têm tratados de extradição com os EUA. Por exemplo, tão logo ele entre em qualquer um dos 27 países da União Européia, ele poderá ser preso e extraditado para os EUA. Não há nada que o governo brasileiro possa fazer para prevenir que isso aconteça.
Terceiro: a empresa matriz nos EUA ou o escritório nos EUA podem, ser processados criminal* e civilmente independente da prisão do brasileiro que de fato pagou a proprina.
PS: Uma lei muito parecida e ainda mais rígida entrou em vigor esse ano para as empresas do Reino Unido. Em inglês, aqui.
* Nos EUA é comum as empresas serem processadas criminalmente. No Brasil, isso só é possível em caso de crimes ambientais.