“Mãe vai à polícia após filho ser tatuado
Uma tatuagem em um garoto de 14 anos, escondida da mãe, virou caso de polícia e ação judicial em Ribeirão Preto (313 km de São Paulo).
Ele tatuou no braço o nome da mãe, Eva, que não gostou do gesto e fez um boletim de ocorrência.
O Ministério Público denunciou o tatuador Fabrício Carlos Augustinho à Justiça.
Uma lei estadual de 1997 proíbe tatuar menores, mesmo se os pais concordarem.
Laudo da perícia considerou a tatuagem lesão corporal gravíssima porque pode não ser removida totalmente em uma cirurgia, segundo o promotor Manoel José Berça"
A lei estadual mencionada na matéria não é criminal porque, no Brasil, questões criminais são exclusivas do governo central. Os Estados e municípios não podem legislar a respeito.
Mas eles podem legislar a respeito de questões administrativas, como no caso acima. A lei estadual à qual a matéria se refere (9.828/97), diz que “os estabelecimentos comerciais, profissionais liberais, ou qualquer pessoa que aplique tatuagens permanentes em outrem, ou a colocação de adornos, tais como brincos, argolas, alfinetes, que perfurem a pele ou membro do corpo humano, ainda que a título não oneroso, ficam proibidos de realizarem tal procedimento em menores de idade (...). Parágrafo único – Excetua-se do disposto neste artigo a colocação de brincos nos lóbulos das orelhas”.
Por não ser uma lei criminal, ninguém pode ser preso ou punido penalmente por ter desobedecido a lei estadual. A punição é administrativa: o fechamento do estabelecimento comercial.
A atuação por lesão corporal aconteceu graças ao Código Penal (que é onde esse crime está previsto).
Segundo nosso Código Penal, é gravíssima a lesão corporal que resulta em “(I) incapacidade permanente para o trabalho; (II) enfermidade incuravel; (III) perda ou inutilização do membro, sentido ou função; (IV) deformidade permanente; ou (V) aborto”.
O adolescente ainda poderá trabalhar, não está sofrendo de enfermidade incurável, não perdeu ou teve membro, sentido ou função inutilizado, e não sofreu um aborto. A única possibilidade seria uma deformidade permanente. Mas é?
Deformidade é um dano estético ou anatômico. Permanente é algo que não pode ser reparado. Um olho perfurado ou decepar a orelha são deformidades estético-anatômicas permanentes (ainda que fosse possível correção por cirurgia plástica ou o uso de prótese).
Além disso, ela precisa ser uma deformidade relevante. Por exemplo, não se pune quem perfura a orelha da criança para que ela use um brinco.
E é aí que entra o problema com a tatuagem: ela há muito tempo deixou de ser um motivo de execração social. É hoje tida como algo desejável por uma grande parcela social. Colocar o tatuador no mesmo grupo de quem decepa as pernas do inimigo é complicado juridicamente.
Além disso, como podemos considerar fazer uma tatuagem em um adolescente com 17 anos, 11 meses e 29 dias uma lesão corporal gravíssima, mas algo socialmente aceitável no dia seguinte?
Faça o paralelo com decepar as pernas: é sempre lesão corporal gravíssima decepar a perna de alguém, não importa a idade da vítima. O que faz com que a tatuagem aos 17 anos seja uma deformidade e no ano seguinte seja esteticamente normal?
‘Ah, mas o menor ainda não tem capacidade de decidir’. É verdade, mas a lei é clara quando uma ação deve ser considerada criminosa apenas porque o menor ainda não tem maturidade emocional, como faz ao considerar sexo com menor de 14 anos estupro de vulnerável.
Ao contrário dos crimes contra a dignidade sexual, nas lesões corporais não há menção à idade da vítima.
Então por que o tatuador foi denunciado por um crime do qual provavelmente será absolvido?
Por uma questão de cultura administrativa.
Em muitos setores da polícia, Ministério Público e mesmo da Justiça no Brasil existe a cultura de tentar o máximo da pena possível pelo crime mais grave possível. Algumas vezes por razões louváveis (quero mostrar como cumpro bem meu trabalho), outras vezes numa espécie de ‘se colar, colou’, algumas vezes apenas para chamar a atenção para o problema e outras vezes para chamar atenção para si mesmo.
Mas ainda que isso possa explicar a origem do comportamento, não explica sua continuação.
Sua perpetuação ocorre porque as normas externas e internas aos órgãos públicos permitem que eles ajam assim.
Compare isso com o que ocorre em países desenvolvidos, onde polícia e Ministério Público apenas levam um caso adiante quando há a combinação de dois elementos: interesse público na condenação e possibilidade real de condenação. Daí por que raramente vemos alguém sendo processado por eutanásia (não há interesse público) e por que o Ministério Público muitas vezes acusa por um crime menor do que aquele realmente cometido (para ter certeza que o acusado será de fato condenado).
Mover um processo que vai resultar em nada tem um custo social, emocional e ao erário público que não se justifica.
Por outro lado, para darmos o direito às autoridades públicas de processarem por crimes menores ou não processarem porque não há interesse público, precisamos, primeiro, confiar em tais autoridades e que elas não usaram esse poder discricionário para ganhos pessoais.