“O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) vai doar carros blindados apreendidos pela Justiça a juízes ameaçados de morte. O primeiro veículo foi entregue a uma magistrada anteontem, em Recife.
O nome dela não foi divulgado por questões de segurança. Ela atua no combate a grupos de extermínio e recebe escolta policial há três anos.“
“Dois homens foram vítimas de latrocínio (roubo seguido de morte) na madrugada de ontem no apartamento de um deles em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo.
As vítimas, o analista de sistemas Eugênio Bozola, 52, e o modelo Murilo Rezende da Silva, 25, foram mortas a facadas. Seus corpos foram encontrados por uma diarista por volta das 9h de ontem no apartamento de Bozola, na rua Oscar Freire, área nobre de São Paulo. O carro dele, um Honda Civic, foi levado pelo assassino (…)
A principal testemunha do caso, de acordo com a polícia, é o porteiro. Os investigadores esperam que ele consiga identificar a pessoa que saiu com o carro de Bozola”
Na primeira matéria, o texto omite o nome da magistrada (mesmo porque o CNJ não divulgou o nome) e chega mesmo a usar (corretamente) o termo genérico ‘magistrada’ para não deixar transparecer se é alguém da justiça estadual (‘juiz’) ou da justiça federal (‘juiz federal’), ainda que ela já seja conhecida de quem quer mata-la (mesmo porque ela recebeu o carro blindado porque está jurada de morte). Quem não a conhece é o resto do público. A importância do sigilo é para não ajudar os criminosos a planejarem como cometer um crime contra ela. E vale lembrar: a magistrada já conta com proteção policial.
Já na segunda matéria, o texto não identifica o porteiro, mas diz claramente que ele é a única testemunha. Até a matéria dizer isso, não era apenas o leitor quem não sabia que ele era a única testemunha, mas também os criminosos responsáveis pelas mortes. Agora os criminosos já sabem disso e sabem que se o porteiro morrer eles não serão identificados.
Eu ou você não podemos identificar o porteiro porque não sabemos em qual prédio o crime ocorreu (apenas a rua na qual ele ocorreu). Mas quem cometeu o crime sabe exatamente de que prédio a matéria está falando e, logo, de qual porteiro ela está falando. E o porteiro não conta com proteção policial.
Quando um jornalista está apurando uma matéria – e esse é um problema especialmente grave na televisão – ele deve levar em conta não só se há interesse do público em conheces a identidade da vítima ou das testemunhas, mas também se essas pessoas podem ficar mais vulneráveis a novos delitos se forem expostas na matéria.
Entre as classes mais ricas, é comum vítimas e testemunhas pedirem anonimato ou simplesmente não serem identificadas pela polícia (caso da primeira matéria). Já no caso das classes mais pobres, as pessoas estão mais acostumadas a terem a privacidade violada com mais frequência e muitas sequer sabem que têm o direito de pedir para que sua identidade seja preservada. Nesses casos, cabe ao jornalista a função de filtrar o que é de interesse jornalístico e o que é interesse mórbido e pode expor a pessoa a mais violência.
Por fim, a segunda matéria mostra que não é só o nome de uma pessoa que pode levar à sua identificação. Dados como residência, profissão, ou contexto do crime podem identificar a pessoa. Sem dar o nome, a matéria acima não só disse quem é a única pessoa que pode identificar os criminosos (porteiro do prédio no qual o crime ocorreu), mas também onde encontrá-lo (na portaria do prédio).