“A Justiça Federal em Belo Horizonte proibiu nesta terça-feira (8), por meio de liminar, a exibição em todo o país do longa ‘A Serbian Film - Terror sem limites’, atendendo a pedido apresentado em ação cautelar pela Procuradoria da República em Minas Gerais.
A liminar foi concedida pelo juiz Ricardo Machado Rabelo, da 3ª Vara Federal, quatro dias após o Ministério da Justiça classificar o filme como ‘não recomendado para menores de 18 anos, por conter sexo, pedofilia, violência e crueldade’.
Na sua decisão, conforme divulgado pelo Ministério Público Federal, o juiz disse que a exibição do filme ‘subverte a ordem natural e lógica do que é razoável’.
‘Tratando-se de um filme que traz consigo a marca da polêmica, já deflagrada inclusive em outros países, sobretudo em razão da alegada cena na qual um recém-nascido é violentado sexualmente, como afirmado na inicial, creio que a decisão da Administração (Ministério da Justiça) de classificar e liberar a exibição do filme, ainda que elegendo um prazo de 30 dias para que os órgãos competentes verifiquem a possível ocorrência de crime, subverte a ordem natural e lógica do que é razoável’, escreveu.
(...) disse que os documentos ‘impressionam e demonstram que algo de errado se passa com o filme’, sendo ‘excessivo, anormal ou em desconformidade com o ordenamento jurídico’.
Ele afirmou que, se não concedesse a liminar, ‘graves e irreversíveis serão os prejuízos causados à ordem jurídica, ao consumidor nacional, tendo em vista o fato de que o filme será encaminhado aos cinemas do país e exibido a toda a população’.
Disse ainda que seu ato não é censura ao Ministério da Justiça e que a liminar é um ato provisório até o julgamento do mérito da ação”.
Como a matéria explica e já falamos aqui, a liminar é uma medida temporária tomada pelo juiz para evitar danos graves e irreversíveis até que ele tenha tempo para julgar o caso definitivamente. Mas o interessante dessa matéria é o debate sobre liberdade de expressão.
Reparem que o magistrado proibiu a exibição baseado em dois pontos diferentes: proteção da ordem jurídica e proteção ao consumidor.
Vamos começar pelo segundo ponto.
A Justiça protege o consumidor contra a exploração de quem vende/distribui um produto ou serviço. A idéia é que o indivíduo está em uma relação de força desfavorável em relação às empresas e por isso ele merece uma proteção especial da lei para que não seja explorado. No caso da matéria acima, poderia haver dois argumentos sobre a proteção ao consumidor: ou o produto é ruim ou o consumidor está sendo enganado a respeito do que está comprando.
Se o filme é ruim do ponto de vista artístico é um julgamento que só o consumidor pode fazer. Arte pós-modernista é intragável para alguns e a melhor das artes para outros. É uma questão de gosto, subjetiva. Não é isso que a lei está tentando proteger. A proteção contra um produto ruim dada pela lei é contra problemas objetivos. Por exemplo, se a qualidade do som for muito ruim e impedir que a audiência ouça o que está sendo dito.
A outra opção – o consumidor está sendo enganado – é o caso da propaganda enganosa. O filme poderia estar sendo ‘vendido’ como uma comédia e é um filme com cenas de estupro de crianças. O consumidor estaria comprando gato por lebre, e a lei o protege.
Em ambos os casos o juiz pode impedir que o produto seja vendido ao consumidor. Mas em nenhum dos dois casos o juiz pode impedir o filme de ser exibido porque ele não gosta do que está sendo mostrado no filme de um ponto de vista artístico.
Já a ordem pública é um debate mais complicado. O juiz, nesse caso, pode impedir o filme de ser exibido se julgar que o filme incitará as pessoas a agirem de uma forma ilegal. Por exemplo, que o filme possa levar as pessoas a cometerem mais estupros de crianças.
O debate aqui é mais complicado porque alguns dirão que TVs, filmes, músicas e vídeo games influenciam como as pessoas agem e reagem, e outros dirão que eles apenas refletem o que está acontecendo na sociedade. O primeiro grupo vê arte como fonte de inspiração de condutas sociais, e o segundo como consequência das condutas sociais. A lei não diz qual lado está certo: desde que bem fundamentado, o juiz pode se alinhar à primeira ou à segunda corrente de pensamento.
Reparem que o juiz, aparentemente, não assistiu o filme. Ele diz que o filme possui cenas de estupro de criança "como afirmado na inicial", ou seja, ele está aceitando a alegação do Ministério Público sobre o que está no filme sem tê-lo assistido.
É normal um magistrado julgar sem ter visto o que aconteceu, baseado em alegações e provas (em um homicídio, o magistrado vai julgar o acusado baseado em provas e alegações, sem ter visto por si mesmo a morte da vítima). Mas ele deve sempre analisar todas as provas relevantes que estejam disponíveis, ainda que para decidir que elas não servem como provas.
Por fim, existe um debate muito importante aqui sobre o que é arte e o que é doentio. O filme mostra cena de estupro de criança. Se olharmos a arte ao longo da história veremos que ela sempre usou temas violentos, seja como comentário, como documentário, como expressão de um sentimento, ou como reflexão. Abaixo alguns exemplos conhecidos de canibalismo, estupro, tortura e homicídios em artes visuais (inclusive envolvendo crianças). Por outro lado, a internet conta com milhões de exemplos de vídeos e fotos de pedofilia, exploração sexual, tortura, sexo violento etc que jamais irão parar em um museu.
Há três problemas com isso: primeiro, passamos a usar uma lógica indutiva em vez de dedutiva. O ponto de partida passa a ser a conclusão a que se quer chegar, e não as provas para se chegar a uma conclusão. Essa é uma lógica perigosa do ponto de vista da democracia. Segundo, juristas não são críticos de arte. Na verdade, conhecem muito pouco a respeito, e por isso não são as melhores pessoas para decidirem o que é arte. E, por fim, mesmo que soubessem muito sobre arte, provavelmente suas opiniões estariam erradas. Críticos se dão melhores olhando a arte do passado do que olhando a arte de seu próprio tempo (Van Gogh e Fernando Pessoa só foram reconhecidos como gênios em suas artes depois de mortos)