“Declaração pessoal sobre cor será único critério para cotas
A palavra do próprio candidato sobre sua cor de pele será o único critério das universidades federais para a definição da raça dos alunos beneficiados pela lei de cotas.
A lei, que já vale para os próximos vestibulares das federais, reserva 50% das vagas nas 59 instituições do país para estudantes que cursaram todo o ensino médio na rede pública de ensino.
Metade dessas vagas será distribuída com base apenas em critérios raciais. A outra metade analisará ainda a renda familiar do candidato.
‘Se nós tivermos algum problema importante [com a autodeclaração], seguramente poderemos avaliar outras medidas. Mas a política é de autodeclaração, esse é o sentido da lei que o Congresso votou’, disse o ministro Aloizio Mercadante (Educação).
Ele refutou a possibilidade de as universidades criarem comissões para confirmar a informação dada pelo aluno - modelo hoje utilizado pela Universidade de Brasília”
Esse é um problema interessante: o que é ser preto, pardo ou indígena? É uma raça? É uma cor? É um sentimento?
A Lei 12.711 não cita ‘raça’ ou ‘cor’ uma única vez. Ela diz apenas “autodeclarados pretos, pardos e indígenas”. E é aí que está o problema.
Para evitar os debates biológico, filosófico e sociológico, o legislador não disse o que realmente queria dizer (ou não disse porque não sabia o que queria dizer), e acabou criando um problema enorme para o futuro. Afinal, se a lei não diz com base em quê alguém pode declarar-se preto, pardo ou indígena, ela possibilita que qualquer pessoa possa declarar-se como tal, com base em sua identificação cultural, social ou mesmo econômica.
Pior: ela impossibilita que o governo possa dizer que o declarante não é preto, indígena ou pardo. Afinal, o que o governo poderia fazer? Olhar a cor da pele? Mas a lei não disse que é uma questão de cor. E mesmo que dissesse, ela teria também teria que dizer a partir de que ‘gradação entre o branco absoluto e o negro absoluto’ alguém deixa de ser branco e passa a ser pardo ou preto. E, para complicar, em algum lugar nesse arco-íris, ela teria que encaixar indígenas sem encaixar asiáticos.
Seria estranho, se não perigoso. Imagine a cena de filas de inscrição para o vestibular com ‘vistoriadores de cor’ medindo o grau de ‘pardês’ do braço do candidato. Ou imagine essa comissão dizendo para dois irmãos filhos dos mesmos pais que um é pardo e outro é branco simplesmente porque um tem a pele mais escura do que o outro.
O governo poderia ir pelo critério de afrodescendentes. Mas, tecnicamente, somos todos afrodescendentes porque todos saímos, em algum momento, da África. Alguns saíram há 100 mil anos, e outros na semana passada. O governo teria que limitar a um momento específico. Algo do tipo: àqueles que vieram para o Brasil direto da África depois de 1500. O problema é que isso excluiria todos os que não vieram direto da África e incluiria brancos e asiáticos que nasceram na África. Imagine uma pessoa preta cujos ascendentes saíram da África foram parar na Europa e em algum momento vieram para o Brasil e um branco sul-africano? O primeiro tem pele preta mas é eurodescendente. O segundo tem pele branca mas é afrodescendente.
O governo poderia beneficiar uma raça. Mas, afinal, o que é uma raça? A ciência divide os seres em reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies. Nós, seres humanos, somos todos de uma única subespécie: Homo sapiens sapiens. O que normalmente chamamos de raças são grupos étnicos e populações cujas variações (clines) podem ser detectadas geneticamente, mas que não constituem subespécies diferentes (assim como todos os cães domésticos são da mesma subespécie: Canis lupus familiaris).
A antropologia forense divide seres humanos em caucasianos, negroides e mongoloides. A lei teria de dizer que preferência seria dada aos membros do segundo grupo e aos membros de um subgrupo específico do terceiro grupo (indígenas americanos fazem parte dos mongoloides).
Mas essas diferenças não estão necessariamente ‘na cara’. Teríamos que testar geneticamente cada vestibulando para descobrirmos. E se olharmos a história veremos no que deu todas as vezes em que governos resolveram segregar suas populações baseados em ‘raças’.
Além disso, seres humanos se amam e procriam (não necessariamente as duas coisas ao mesmo tempo) independente da classificação forense. Dois filhos de pais de ‘raças’ diferentes podem herdar genes diferentes. Correríamos os mesmos riscos apontados acima de termos filhos dos mesmos pais tratados de formas diferentes pela lei.
Para evitar a polêmica (ou porque não prestou atenção no projeto que estava votando), o legislador se silenciou. Mas, ao omitir-se, criou uma dor de cabeça, já que abriu espaço para as pessoas declararem que se sentem pretos, pardos ou indígenas. Ao menos na hora do vestibular.
PS: Uma outra lacuna grande da lei: como tratar crianças adotadas por pais de cor e/ou raça diferente? Elas estarão submetidas às condições financeiras dos pais adotivos, influenciadas pela genética dos pais biológicos, e limitadas (ou ajudadas) pelo preconceitos da sociedade. Qual deve predominar nesse sistema?