“Carta não autoriza STF a criar norma, diz Moreira Alves
Por mais de duas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi conhecido como a Corte de José Carlos Moreira Alves. Aposentado desde 2003, o jurista constatou que o STF se tornou outro tribunal. Está mais político do que em seu tempo, mudou orientações em relação a outros Poderes (...)
Outra tese que foi fielmente seguida pelo STF de Moreira Alves era a de a Corte não criar ou indicar normas, caso o Congresso demore para aprovar leis. O tribunal simplesmente ultrapassou o semáforo dessa regra, em 2007, quando decidiu que, na falta de aprovação pelo Congresso de uma lei sobre a paralisação do trabalho pelos servidores públicos, eles teriam de seguir a lei de greve do setor privado. No início deste ano (...) o STF decidiu que, sem lei para o aviso prévio, a própria Corte vai definir critérios para fixar um novo prazo para o benefício que será superior aos 30 dias atuais. (...)
Ao receber pedidos judiciais para que o Congresso aprove uma lei, o STF apenas fazia uma comunicação aos parlamentares de que eles estavam demorando para garantir um direito à população. Esses pedidos são chamados formalmente de mandados de injunção. 'Eu sempre disse que o mandado de injunção é um instituto que, na realidade, não tinha possibilidade de criar normas, mas era apenas um alerta que se dava ao Congresso Nacional para que ele criasse as normas', disse Alves. Hoje, os mandados de injunção ganharam uma nova força, pois há sempre o risco de que, ao julgá-los, a Corte (...) indique uma nova lei a ser aplicada ou fixe novas regras que não foram aprovadas pelo Parlamento. 'É a própria Constituição que declara que, na ação de constitucionalidade por omissão [dos parlamentares], se faça comunicação ao Congresso. Mas não diz lá que se faça norma para substituí-lo ou para atuar no mundo da lei.'”
A entrevista é interessante para refletirmos sobre uma mudança silenciosa, mas de grandes proporções na democracia do nosso país.
Apresentada em sua forma moderna por Montesquieu em 1748 em seu livro O Espírito das Leis, a teoria da tripartição dos poderes preconiza que o poder do Estado deve ser dividido em funções (legislativa, executiva e judiciária) e exercido por órgãos diversos, de modo a formar um sistema de controle cruzado, mais conhecido como sistema de ‘controle mútuo’, ‘freios e contrapesos’ ou ‘checks and balances’, em inglês.
A função legislativa consiste em elaborar as leis (normas jurídicas de caráter geral e abstrato) que regulam o Estado e todos os que habitam em seu território. Tal função é exercida por representantes eleitos pelos cidadãos, que compõem, em nosso caso, o Senado Federal e da Câmara dos Deputados na esfera federal, assembléias legislativas, na esfera estadual, e das câmaras municipais, na esfera municipal.
Já a função executiva tem por objetivo executar tais normas jurídicas, gerindo o patrimônio público, a defesa nacional e interna, e aplicando penalidades àqueles quem desrespeitar as leis, quando o Judiciário assim decidir.
Por fim, a função judiciária consiste em julgar e resolver os conflitos que surjam entre os habitantes ou entre esses e o Estado, aplicando as leis aos casos concretos.
No Estado brasileiro (assim como em outros países), temos algumas deformações desse sistema com o Legislativo ‘julgando’ casos concretos por meio das CPI’s; com o Executivo ‘legislando’ por meio de medidas provisórias; e com o Judiciário tendo de ‘executar’ políticas públicas ou gerir o patrimônio público por meio de liminares.
Na matéria acima o ex-Ministro chama a atenção para uma nova deformação: o fato de o Judiciário ter passado a ‘legislar’, isto é, criar normas gerais e abstratas em vez de apenas aplicá-las aos casos concretos.
Nos últimos anos, essa transformação tem se tornado cada vez mais clara, não apenas com a mudança na utilização dos meios de integração entre os poderes Judiciário e Legislativo, como a ação direta de inconstitucionalidade (ADI ou Adins) e o mandado de injunção mencionados pelo ex-Ministro, mas também pela ampliação dos efeitos de determinadas decisões judiciais para outros casos além daquele que está sendo julgado, como na chamada repercussão geral e nos recursos especiais repetitivos.
Isso não é necessariamente algum ruim (ou bom). Países como os EUA, Inglaterra, Austrália, Índia, Quênia, Paquistão e Burma possuem sistemas legais chamados de common law (sistema jurisprudencial) que são baseados justamente em juízes estabelecendo normas. Por exemplo, se você procurar qual é a lei que trata de homicídio na Inglaterra, não vai achar, porque homicídio foi um crime criado por magistrados e não por lei. Outros estados (ou cidades-estados) delegam o poder de estabelecer normas a religiosos, como no Irã, Afeganistão, Arábia Saudita e a Santa Sé (Vaticano).
Se essa é uma mudança para melhor ou não, só o tempo dirá. Não existe apenas uma única forma de democracia, assim como não existe apenas uma única forma de ditadura. Mas devemos ponderar dois pontos importantes: primeiro, essa é uma mudança muito grande e não deve ser feita sem reflexão sobre o que ela significa para nossa democracia.
E, segundo, devemos nos perguntar por que o Judiciário está fazendo normas: será por uma opção democrática ou por uma falta de opção? Por exemplo, se o Legislativo não faz leis, ou não tem capacidade de fazer leis inteligentes, alguém terá que interceder para evitar que o país imploda em uma ditadura de leis inadequadas ou de ausência de leis. Mas, por outro lado, o Judiciário é o único poder não eleito, logo, teoricamente, é o único poder que não representa a vontade dos cidadãos, ou seja, suas normas não representam a vontade dos cidadãos (e não têm essa obrigação). Se as leis feitas pelo Legislativo são ruins ou se o Legislativo não faz leis necessárias, portanto, não seria por que os cidadãos assim querem? Afinal, se quisessem de outra forma, teriam eleito outros representantes ou pressionados seus representantes a agirem de forma diferente. Ou é por que os cidadãos não sabem votar? Mas se eles não sabem votar, não seria melhor uma ditadura, mesmo que em uma ditadura eles não tenham direitos? Ou deveríamos dar o direito a voto apenas a quem sabe votar? Mas, nesse caso, como decidir quem sabe votar e quem deve decidir isso? Ou esse é apenas um processo de aprendizado democrático depois de um longo período de ditaduras em nossa história e de um longo período de despreparo educacional em nosso país?
Quando pensamos em países passando por transições como Afeganistão, Líbia ou China, é fácil vermos os dilemas que enfrentam, mas esses dilemas também estão presentes em nosso próprio país. Afinal, nossa atual democracia tem menos de 23 anos, e durante nossos 511 anos de história escrita, tivemos menos de 73 anos de governos que chegaram à presidência através de uma eleição minimamente democrática. Isso é menos que a expectativa de vida de um brasileiro.