Ao que tudo indica, não é pelo transporte público (ou coletivo) gratuito, que era a reivindicação inicial, quando os números de manifestantes eram significativamente menores. Tampouco parece ser apenas pela melhoria do transporte coletivo (muitos dos que estavam nas manifestações de ontem sequer usam – e talvez jamais tenham usado ou venham a usar – tal transporte).
A julgar apenas pelos cartazes, poderíamos dizer que é contra um político ou algum partido político. Mas contra qual, se todos os grandes partidos foram citados de forma pejorativa e as manifestações ocorreram em cidades e Estados governados pelas mais diversas facções políticas?
O problema de se ter uma manifestação sem um objetivo claro é que não se saberá quando o objetivo foi alcançado. Se não sabemos quando o objetivo foi alcançado, continuamos a protestar. É o protesto contra tudo e a favor de nada. É o protesto sem sentido.
Mas há duas outras hipóteses importantes que devemos ao menos considerar.
A primeira é que não foi um protesto, mas uma catarse coletiva. Por estarmos descontentes com as desigualdades econômicas, sociais etc, o aumento das tarifas foi o estopim que catalisou nossa revolta. Já falamos disso aqui, e talvez essa seja a melhor explicação para o que ocorreu nas manifestações anteriores.
Mas há uma outra possibilidade importante para a manifestação de ontem: ela foi um protesto pelo direito de protestar.
Ela ocorreu poucos dias depois de um manifestação, muito menor, ter sido reprimida violentamente pelo governo e depois de os governos – nas três esferas – terem dado a entender que a polícia não extrapolou seu direito. E aquela manifestação, por sua vez, ocorreu logo após uma manifestação anterior quando alguns (ou muitos) manifestantes extrapolaram seus direitos.
Em outras palavras, a manifestação de ontem foi uma reação à reação. Mas não uma reação no sentido de afirmar as reivindicações dos protestos anteriores, mas uma reação em termos de afirmar o direito de reivindicarem. Daí ser um protesto pelo direito de protestar.
Em termos de democracia, isso é importante. Quando lutamos pelo direito do outro ser ouvido não estamos lutando pelo que ele diz, mas pelo direito de dizer.
Em termos de democracia brasileira, isso é ainda mais importante. Primeiro, porque seria a sociedade dizendo que o Estado é ela, e não um meio de instrumentalização da vontade do governante (que é o que aconteceu – e ao que nos acostumamos – durante as ditaduras).
Mas, segundo, porque momentos como esse podem se tornar rapidamente o mito fundacional de uma sociedade.
Mito fundacional (ou fundador) é aquilo que as sociedades veem como o exemplo mais básico de seus valores fundamentais. É o exemplo que explica e exemplifica os valores de uma sociedade.
O mito fundacional dos EUA, por exemplo, é de que é a terra da liberdade e onde tudo é possível (ainda que se olharmos a maior parte de sua história, veremos que isso não é necessariamente verdade). Daí se referirem sempre a presidentes que começaram do nada (como Lincoln), pessoas que fizeram suas próprias fortunas (como Buffett), e imigrantes que puderam recomeçar suas vidas (como Madeleine Albright). O mito fundacional francês é a igualdade (ainda que seja uma sociedade desigual). Daí se referirem constantemente à necessidade de manterem as estruturas que igualam todos os cidadãos.
O mito fundacional do Brasil até hoje – se é que temos um – não é dos mais positivos: é o do jeitinho, da apropriação do espaço público pelo privado, e do cada um por si. Daí nos referirmos a Pêro Vaz pedindo emprego para parente na carta na qual informada sobre a descoberta do Brasil, aos sucessivos golpes de Estado, ao ser o país do carnaval, ou da corrupção, ou da impunidade.
Raramente fomos às ruas como nação; e quando fomos (Diretas Já, por exemplo), saímos perdendo.
Óbvio que não dá para saber o que cada um sentia ao sair às ruas ontem. Talvez quisessem apenas expressar a frustração contra um partido ou político específico, ou contra a política em geral. Ou talvez fosse apenas mais um carnaval temporão. Mas não podemos desprezar a possibilidade de que tenha sido um momento no qual nos unimos não pelos nossos interesses individuais, mas para dizermos que lutaremos pelo direito do outro de ser ouvido (ainda que discordemos do que ele diz), ou que a violência do Estado não pode ser usada abusivamente contra a sociedade porque sua legitimidade emana da própria sociedade.
Ou talvez tenha sido apenas um grande carnaval.
E aí é que entra o outro ponto importante dos mitos fundacionais: o ato não adquire seu valor histórico por si só: o seu valor é adquirido pelas condutas subsequentes da sociedade. Se os franceses não tivessem continuado a lutar pela igualdade, a queda da Bastilha teria sido apenas a invasão de uma penitenciária para soltar criminosos.