“O Itamaraty concedeu 328 passaportes diplomáticos em caráter excepcional e por "interesse do país" de 2006 a 2010, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Entre os beneficiados estão ex-vice-presidentes, ex-governadores, vice-governadores, 11 prefeitos de "grandes capitais", presidentes de partidos, ministros aposentados de tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União, líderes religiosos, diretores e secretários-gerais do Congresso Nacional.
O detalhamento consta da resposta assinada pelo ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, e enviada ao Ministério Público Federal no Distrito Federal. (…)
Depois da reportagem publicada, o Ministério Público pediu a anulação dos passaportes diplomáticos concedidos para pessoas não contempladas pelo decreto 5978/ 2006 e o controle da emissão do documento por ‘interesse do país’.
O decreto previa que o documento fosse dado a presidentes, vice-presidentes, ministros, parlamentares, chefes de missões diplomáticas, funcionários da carreira diplomática, ministros dos tribunais superiores, procurador-geral da República, subprocuradores-gerais, ex-presidentes e seus dependentes (filhos até 21 anos - e até 24 anos, no caso de estudantes).
Patriota admite em sua resposta que os familiares de Lula receberam o documento em condição excepcional. Ele afirma ainda que o ex-presidente é uma ‘personalidade que continua a ter grande prestígio nacional e internacional’. (…)
São eles: diretores executivos do Banco do Brasil, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Organização Internacional do Café, da Organização Internacional de Madeiras Tropicais, da Interpol, do FMI (Fundo Monetário Internacional) e até da Fifa.
Dos 328 casos excepcionais, 148 são funcionários da Presidência da República.
Para justificar os 22 líderes religiosos na lista de beneficiários, Patriota diz que é para manter a simetria aos ‘cardeais’ da CNBB, que recebem o benefício do Vaticano.
A Folhamostrou que o bispo Romualdo Panceiro, segundo na hierarquia da Igreja Universal do Reino de Deus, recebeu o documento.
O ministro disse que o governo determinou uma revisão das normas de sua concessão para ‘assegurar que os critérios de excepcionalidade’ estejam de acordo com ‘os interesses do país’.
O Itamaraty alterou as regras para a concessão do documento em caráter excepcional 19 dias após a primeira reportagem da Folha. Agora, o documento só pode ser pedido por 'solicitação formal' e 'fundamentada' e os nomes têm de ser divulgados”.
E qual é o problema de conceder passaporte diplomático para amigos? Afinal, ninguém foi prejudicado. Não é o caso de estar subtraindo algo do patrimônio da União para dar a alguém. É verdade que existe um pequeno custo de emissão do documento, mas a solução poderia ser o pagamento pelo documento em vez de se dificultar a emissão do passaporte para os amigos.
O 'problema' - e a razão pela qual isso não pode acontecer - é que nossa Constituição (artigo 37) diz que “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)”
Dois dos princípios estabelecidos naquele artigo são importantes para entendermos todo o barulho em relação à concessão de passaportes diplomáticos para amigos.
O primeiro é o da impessoalidade. Impessoalidade significa que o servidor público não pode beneficiar ou prejudicar alguém só porque esse alguém é seu amigo ou inimigo. Por esse princípio, pessoas em situações idênticas devem ser tratadas de forma idêntica. Da mesma forma que um prefeito não pode proibir seu inimigo político de ter uma padaria, o Ministério das Relações Exteriores não pode conceder o passaporte diplomático para quem não ocupa um dos cargos listados na lei que permite a concessão de tais passaportes.
O segundo princípio é o da moralidade. Nem tudo que é legal é moral, e nem tudo que é moral é legal. Por exemplo, a eutanásia é crime (auxílio ao suicídio), mas para uma grande parte da população ela é um ato moral, pois a intenção é evitar que quem está morrendo sofra desnecessariamente. O mesmo vale para o aborto: para muita gente é melhor terminar a gravidez do que ‘condenar’ a mãe a carregar dentro de seu corpo um feto indesejado. Por outro lado, manter dois namoros ao mesmo tempo, não tomar banho ou ser um aluno relapso não são atos ilegais, mas são condutas imorais, pois vão contra o que é esperado pela sociedade. O mesmo era válido para o deputados que desviavam dinheiro público para suas empresas, sobre o qual já falamos aqui.
Ao contrário do resto da sociedade, que pode fazer o que bem entender desde que não seja ilegal (ainda que seja imoral), os servidores públicos sofrem uma segunda limitação em suas ações: além de terem de ser legais (permitidas pela lei), elas devem ser também morais, ou seja, precisam estar de acordo com o que é esperado de uma pessoa que é paga para servir o interesse da sociedade. E usar da posição de servidor público para pedir ou emitir um passaporte diplomático para quem não precisa pode ser até não ser ilegal, mas é imoral pois (a) não atende aos interesses da sociedade e (b) abusa do poder discricionário de seu cargo, ou seja, abusa da flexibilidade concedida pela lei.