“A procuradora de Justiça aposentada Vera Lúcia de Sant’Anna Gomes, acusada de maus-tratos a uma menina de 2 anos, foi indiciada nesta quinta-feira (29) pelos crimes de tortura qualificada e racismo. A informação é da delegada Monique Vidal, titular da 13ª DP (Copacabana), onde a procuradora prestou depoimento por quase três horas.
As penas para os crimes são de dois a oito anos e de um a três anos de prisão. Segundo a polícia, a procuradora nega as acusações.
De acordo com a delegada, o laudo complementar que ela pediu ao Instituto Médico Legal (IML) mostra que a criança sofreu multiplicidade de lesões, em dias diferentes, e por meio cruel.
Já o crime de racismo, segundo a delegada, foi configurado pela forma como a procuradora se referia aos seus empregados.
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Monique Vidal não quis adiantar se vai pedir prisão temporária ou preventiva da aposentada. ‘Isso não vou adiantar para não prejudicar o finalzinho do inquérito policial. Até amanhã ele acaba. As agressões são gravíssimas. Eu não mostrei as fotos que foram apresentadas pela Vara da Infância por que eu acho que as pessoas não merecem ver. Agora é com a Justiça. Nós estamos terminando esse inquérito e amanhã entregamos ao Ministério Público.’
A acusação de crime de racismo foi acrescentada ao inquérito a partir dos depoimentos dos empregados. ‘De acordo com os depoimentos prestados aqui pelos empregados, ela foi autuada pelo crime de racismo conforme artigo 20, da lei 7716/89 (que trata dos crimes de preconceito de raça ou cor). Não é injúria racial, é crime de racismo, é contra a raça negra. Ela costumava dizer ‘isso é comida de preto, isso é serviço de preto’ ao se dirigir aos empregados’, afirmou a delegada.”
O artigo ao qual a delegada se refere é este: “Art. 20 - Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
Algumas leis são complicadas de serem entendidas – e ainda mais complicadas de serem explicadas – e essa é uma delas. Reparem que esse artigo se refere a duas condutas: discriminação e preconceito, embora ele não diga qual a diferença entre elas, ficando a cargo dos juristas tentar entender o que ela quis dizer.
Discriminar é impedir ou tentar impedir que alguém exerça seus direitos devido à sua raça, etnia, nacionalidade ou religião (a mesma lei, em seus artigos anteriores, estabelece inúmeros casos de condutas discriminatórias. Por exemplo, “art. 4º: negar ou obstar emprego em empresa privada”, “art. 6º: recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau”, etc).
E o que é preconceito? Bem, ai as coisas ficam mais complicadas porque, a princípio, preconceito é um sentimento, e as leis não podem punir sentimentos, mas apenas ações (ou omissões). Uma lei não pode punir seus pensamentos. Desejar a morte de alguém, ainda que seja moral e eticamente reprovável, não é punível legalmente. Só passa a ser crime quando uma pessoa resolve tentar matar a outra pessoa ou quando ela, de alguma outra forma, demonstra ao resto da humanidade que está pensando matar a vítima.
O mesmo ocorre com o preconceito: a lei não pune o fato de alguém, em seus pensamentos, não gostar de pessoas brancas, negras, indianas, católicas, protestantes ou quem quer que seja. Ela não pode punir porque ela não sabe o que se passa dentro da cabeça das pessoas. A lei só passa a poder punir quando as ações começam a externalizar os pensamentos: quando alguém diz coisas ofensivas (injúrias) ou trata pessoas de formas distintas devidos à suas nacionalidades, religiões, etnias ou raças.
Preconceito não é discriminar, pois a lei já fala em discriminar e por isso não precisaria colocar seu sinônimo logo a seguir. E preconceito não é um pensamento, pois a lei não pode punir seus pensamentos. Por isso, o que sobra para ser definido como preconceito são as atitudes que demonstram que a pessoa, mesmo que não esteja impedindo a vítima de exercer seus direitos (o que seria discriminar), está de alguma forma tratando a vítima de forma diferente devido à sua raça, etnia, religião ou nacionalidade.