“Justiça livra mulher de laqueadura forçada
A Justiça de São Paulo decidiu anteontem liberar uma mulher de 27 anos, com deficiência intelectual, da obrigação de fazer laqueadura.
Moradora de Amparo (a 133 km de São Paulo), ela foi obrigada a passar pela esterilização em uma determinação judicial de 2004, mas o procedimento não havia sido feito.
Naquele ano, o Ministério Público argumentou que ela, com 19 anos, estava em situação de vulnerabilidade porque, apesar de ser diagnosticada com retardo mental moderado, não tinha acompanhamento da família e era vista sozinha pelas ruas.
A intenção era evitar que ela tivesse um filho caso fosse vítima de abuso”.
A tendência natural do ser humano – assim como todos os outros animais – é tentar resolver um problema da forma mais eficiente possível. É uma questão de sobrevivência evolucionária: quanto mais se gasta tempo e energia, maior a possibilidade de um predador comê-lo, de se ter menos energia para lutar contra um oponente, e menos tempo para buscar abrigo, comida e alguém com quem procriar. Ao longo do milênios, nossos ancestrais menos ineficientes não se reproduziram com eficiência. Somos todos descendentes dos homens da caverna mais eficientes.
Mas nem sempre o que é eficiente é justo. E aí se evidencia uma das diferenças básicas entre sociedades humanas modernas e os animais. Estamos preocupados não só com nossa sobrevivência, mas também com aquilo que é justo.
Uma manada de elefantes abandona o elefante que não consegue acompanhá-la, seja porque é muito velho, seja porque é muito novo, seja porque ficou doente. Essa é a solução evolutiva mais eficiente; mas não é a mais justa.
Daí porque seres humanos criam hospitais, orfanatos, sistemas de seguridade social etc. Ainda que tudo isso tenha um custo enorme, não abandonamos aqueles que nos acompanham: desenvolvemos sistemas, processos e estruturas para que eles continuem a acompanhar o grupo. A curto prazo, pode até não ser economicamente tão eficiente quanto o abandono, mas é mais justo e moralmente desejável. E normalmente mais eficiente a longo prazo.
Mas como a moral nem sempre garante a cooperação de todos, construirmos arcabouços legais para reforçar a obrigação de aceitar esses deveres. Deixados a nosso bel prazer, um, alguns ou a maioria poderia em algum momento optar pela opção que lhes custasse menos.
Dito isso, o caso da matéria acima é emblemático para mostrar como ainda caímos na tentação de usar a solução mais rápida, ainda que ela seja a menos justa ou eficiente a longo prazo.
A pessoa deficiente mental tem direitos como qualquer outra pessoa. Mas por estar mais exposta aos perigos naturais e sociais, também merece maior proteção legal.
A sexualidade é um direito como qualquer outro e o deficiente mental não é privado de sua sexualidade.
Mas por o deficiente mental não ter a mesma capacidade de se proteger que as demais pessoas consideradas 'normais', a lei proíbe que outras pessoas aproveitem-se de sua fragilidade para com ele satisfazer seus impulsos sexuais.
O que a lei coíbe não é a prática sexual do deficiente mental. Ele pode, por exemplo, se masturbar. O que a lei proíbe é que se tire vantagem de sua fragilidade. Ou seja, que alguém faça sexo com ele, explorando sua fragilidade, ingenuidade ou inocência.
É quem faz sexo com o deficiente mental que será punido (estupro de vulnerável), não o deficiente. Ele é a vítima.
Mas no caso da matéria acima, o Ministério Público – na busca da solução mais eficiente a curto prazo, e não da solução mais justa ou que resolva o problema pela raiz – inverteu essa lógica: se não podemos proteger a deficiente, que impeçamos que ela engravide.
É a mesma coisa de dizer ‘se não podemos garantir que os objetos em sua casa não serão furtados, vamos proibí-lo de comprar qualquer objeto’ ou ‘se não podemos garantir que mulheres não serão vítimas de estupro, as proibiremos de saírem de casa desacompanhadas’. É transferir para a vítima em potencial o ônus pela falha do Estado em protege-la.
Ademais, ainda que pareça eficiente a curto prazo, essa não é a melhor solução a longo prazo. Há milhares de pessoas em situações semelhantes a ela. Ao laquear uma deficiente, tolhemos seu direito, agredimos seu corpo, mas não resolvemos o problema da deficiente que vive na casa ao lado. Teremos que laqueá-la também. Assim como todas as deficientes na mesma situação.
Mas se resolvemos o problema em sua raiz – a incapacidade do Estado em proteger os deficientes e coibir os criminosos – resolvemos o problema não só em relação aos deficientes mentais, mas também às crianças, idosos, mulheres, deficientes físicos e todas as demais potenciais vítimas de predadores sexuais. E ao mesmo tempo preservamos ou fortalecemos os direitos dessas vítimas em potencial.