"Paulista 'picha' curador da Bienal de Berlim
Convidados da Bienal de Berlim, aberta no fim de abril, pichadores brasileiros se envolveram numa confusão com os organizadores que teve como saldo a ‘pichação’ do curador da mostra, o artista polonês Artur Zmijewski.
Em meio a uma discussão depois que os brasileiros picharam uma igreja na qual dariam um workshop, Djan Ivson, ou Cripta Djan, 26, o mesmo que pichou o espaço vazio da Bienal de 2010 em São Paulo, esguichou tinta amarela em Zmijewski (...)
Caracterizada pela ousadia curatorial, a bienal berlinense tem como título de sua sétima edição 'Forget Fear' (esqueça o medo).
Parte da programação da bienal, o workshop dos pichadores brasileiros ocorreria no último sábado na igreja de Santa Elizabeth.
De acordo com o relato de Cripta, que estava acompanhado de outros três colegas do movimento ‘Pixação’ (Biscoito, William e R.C.), o grupo chegou disposto a demonstrar seu trabalho, mas não no formato didático tradicional de um workshop.
‘Não tem como dar workshop de pichação, porque pichação só acontece pela transgressão e no contexto da rua’, disse Cripta à Folha, por telefone.
Os convidados passaram a escalar o prédio da igreja e a pichar. Segundo Cripta, os organizadores se desesperaram com a atitude e disseram que eles não estavam autorizados a mexer naqueles lugares.
‘Assim que é bom. Se não é pra pichar, nós vamos pichar. Não adianta querer controlar o incontrolável’ (…)
O curador chamou a polícia. De acordo com o brasileiro, os policiais quiseram prender o grupo, mas, ainda segundo Cripta, recuou após intervenções do público e de explicações de que eram convidados da Bienal (…)
A bienal, que vai até o dia 1º/7, busca escancarar os conflitos da sociedade de hoje (…)
‘Eles nos convidaram porque queriam conhecer nossa 'pixação'. Pronto, conheceram’, disse Cripta”.
Normalmente vemos lei como algo careta, conservador, retrógrado; e a arte como algo desbravador, vanguardista, (pós-)moderno. Ainda que isso seja estereótipo (o artista lambe-lambe da praça é muito mais conservador do que o jurista que está pensando sobre como maximizar o uso da nanotecnologia), muitas vezes está correto porque a função lei é proteger, e a proteção é muito mais simples se utilizamos aquilo que já é conhecido. Daí a tendência dos juristas se apegarem ao passado. Tudo que é novo tem um risco porque ainda é desconhecido (embora às vezes menor do que aquilo que já exista e não funciona. Mas essa é outra discussão). Já a arte quase sempre busca diferenciar, marcar, emocionar. E isso é muito mais fácil de ser alcançado quando se foge dos limites daquilo que já é conhecido e aceito. Você provavelmente não repara nas moças e moços de biquínis e sungas na praia, mas certamente os notará se seu colega aparecer de sunga no meio de seu escritório, fábrica ou sala de aula. A vanguarda artística busca o inusitado. Daí porque Duchamp colocou um urinol no meio de uma exposição: embora todo mundo conhecesse o objeto, ninguém o havia visto em uma exposição. Com isso gerou a emoção (e comoção) que queria.
Porque a arte tenta ir além do esperado ou aceito, algumas vezes lei e arte se chocam. Na Capela Sistina, Adão teve sua genitália coberta porque sua nudez ia contra as leis da Igreja. O filme Holocausto Canibal, do diretor Ruggero Deodato, foi proibido em diversos países porque, primeiro, se suspeitava que atores de fato haviam sido mortos durante a filmagem (os chamados snuff movies) e, depois, por causa da violência gráfica. E muito do que Chico Buarque e Caetano produziram durante a ditadura foi censurado e sua divulgação proibida.
Mas o conceito do que é aceitável muda com o tempo e, com ele, as leis. E, muitas vezes, por causa da arte e dos artistas. O Holocausto Canibal inspirou As Bruxas de Blair, que até hoje é, percentualmente, o maior lucro em um investimento cinematográfico da história; o Vaticano está cheio de quadros e esculturas nuas; e Chico Buarque e Caetano estão em rádios e TVs constantemente. Talvez um dia todos os monumentos estejam pichados e achemos isso comum e até bonito.
Mas aí é que está o problema. Não dá para saber o que será considerado arte no futuro. Não dá para ligar os pontos olhando para frente, mas apenas para trás. O que já foi crime pode ter passado a ser uma forma de arte. No início do século passado era crime jogar capoeira. Algumas tentativas jamais se tornam arte. Armin Meiwes – hoje conhecido como o canibal de Rotemburgo, e cumprindo pena de prisão perpétua – ficou conhecido por ter amputado e comido o pênis de seu parceiro sexual (com ajuda da própria vítima), antes de matá-la e esquartejá-la para ir comendo aos poucos. Tudo isso em vídeo. Nem só por isso o que ele fez virou arte. Outros inspiram novos movimentos, mas ainda são vistos como controversos e ninguém arrisca a dizer que são (ou que não são) arte porque se chocam com a moralidade (mais do que com a lei). O filme de Deodato – embora tenha inspirado o gênero ‘terror real’ – ainda é proibido em vários países e causa enorme celeuma. Já outros ficam no limbo porque se chocam com a lei (mais do que com a moralidade). O livro Anjos Proibidos, do fotografo Fábio Cabral, com adolescentes nuas, até hoje é proibido, o que causa enorme debate tanto no meio artístico quanto no jurídico. E, algumas vezes, aquilo que era arte ‘convencional’ no passado (e aceito pela lei de então) já não é aceito como arte hoje. Diversos filmes da década de 50 e 60 (e mesmo produções recentes, como O Portal do Paraíso e Rambo 3) mostram animais sendo mortos e maltratados. Nenhum desses filmes poderia ser rodado hoje justamente por conta do sofrimento que causam aos animais (repare que no final dos créditos de todo filme recente que utilizam animais, há algo do tipo ‘nesse filme nenhum animal foi morto ou maltratado’). E Xuxa fez um filme chamado Amor, Estranho Amor, no qual aparecia nua e insinuando um ato sexual com uma criança, algo que seria punido como crime pelas leis atuais.
Há um problema inerente em todos esses casos: mesmo quando a lei se refere à arte, ela não define o que é arte. Se arte é apenas o que é belo, o debate passa a ser uma questão de gosto pessoal. E se arte é o uso de uma habilidade para a expressão racional de um sentimento, o pintor é tão artista quanto o jogador de futebol, quanto o psicopata, quanto o motorista que xinga o outro: todos estão utilizando uma habilidade para expressar racionalmente seu sentimento (de prazer, alegria, ódio, vingança etc). Ninguém sabe ao certo como definir o que é arte.
Por isso ninguém sabe se no futuro, quando olharmos para os pichadores de hoje, diremos 'meu deus, como não percebemos o valor artísticos daqueles gênios incompreendidos?' ou 'meu deus, por que deixamos aqueles criminosos destruírem nossas cidades?'
E daí a confusão da polícia na matéria acima. Obviamente pichar uma igreja é um crime; mas eles foram convidados. Mas eles não foram convidados a picharem a igreja - mas apenas a 'ensinarem' como pichar – e, logo, ultrapassaram a autorização que receberam. Mas a pichação é uma forma de ir contra o sistema (“pichação só acontece pela transgressão”): se convidou, assumiu o risco. Sim, mas se aceitou o convite, aceitou as regras. Enfim, o debate é infindável, e esperar que o policial da matéria acima resolva o debate é perda de tempo.