"Na cela escura
Executivos presos na Operação Lava Jato passam o dia em cubículos onde dividem a mesma latrina e às vezes são obrigados a comer com as mãos; Renato Duque, ex-diretor da Petrobras, cantava para espantar a tristeza"
Em seu primeiro artigo, nossa Constituição determina que a dignidade da pessoa é um dos fundamentos de nossa democracia. O artigo quinto vai além e diz que ao preso é assegurado o respeito à sua integridade física e moral, e que ele não será punido de forma cruel.
No direito brasileiro (assim como no de qualquer outra democracia), a função da pena não é humilhar o condenado. É reeducá-lo, puni-lo e servir de exemplo a outros potenciais criminosos. No caso de quem ainda sequer foi condenado, a prisão deve ser tratada com ainda mais cautela, pois não sabemos sequer se a pessoa é culpada.
A reportagem acima é parecida com muitas outras publicadas nos últimos anos: algum político ou empresário ou artista de algum renome é preso e algumas semanas ou meses depois começam s aparecer comentários sobre as condições em que está preso. Advogados de defesa quase sempre são tanto os instigadores quanto os beneficiários de tais reportagens: as utilizam como ferramenta emotiva para convencer magistrados a elaborem a prisão ou conceder benefícios como progressão de regime ou mudança de presídio.
Ausência de privacidade dos vasos sanitários, a falta de água quente no chuveiro, a impossibilidade de contatos íntimos com cônjuges, a falta de espaço físico ou a impossibilidade de acesso a jornais e TVs são temas comuns. Condições que seriam melhor descritas como subumanas.
Com alguma nuance aqui ou ali, Todas essas alegações tendem a ser verdadeiras.
Mas o que normalmente deixamos de lado é que esses presos-celebridades não estão sendo submetidos a condições especialmente subumanas em relação a outros presos. Pelo contrário: justamente por serem presos-celebridades, quase sempre são postos em celas melhores que a média, em presídios melhores que a média, contam com a assistência de advogados melhores do que a média, e magistrados acabam dando mais atenção a seus casos do que normalmente dão à média dos hóspedes do sistema prisional brasileiro.
Tais pessoas não estão raramente presas nos piores exemplos do sistema prisional como Carandiru ou Pedrinhas. Não serão estupradas em suas celas e muito provavelmente não terão de pagar ao 'dono da cela' pelo direito de ter um colchão ou tomar banho.
São, enfim, os 'privilegiados' do sistema prisional brasileiro. As chances de serem decapitados e terem suas cabeças usadas como bolas de futebol, contraírem AIDS ou tuberculose ou de serem esfaqueados enquanto presos são mínimas. A maioria dos outros presos, ao contrário, está muito mais exposta a condições não só psicologicamente desumanas e insalubres, mas de reais riscos de morte e graves violências físicas.
Focamos nas condições carcerárias dos presos-celebridades e não nas condições carcerárias muito mais precárias das dezenas de milhares de presos que se encontram em situação muito pior porque presos-celebridades são oriundos de classes sociais mais abastadas. Identificamo-nos com eles mais facilmente. Ainda que não admitamos, nos revoltamos com as condições de sua prisão porque poderíamos ser um deles. Eles são nomes e faces e não apenas estatísticas.
Mas há um segundo motivo: a condição que a vasta maioria dos presos encontra na prisão não é muito diferente da condição que já tinham fora da prisão. A vasta maioria de nossos presos são pobres ou miseráveis, quase sempre oriunda de favelas ou sem-tetos, que já estava submetida a condições degradantes fora da prisão. Isso não quer dizer que tais pessoas cometam mais crimes, mas são os que acabam mais frequentemente presos e condenados.
Já os presos-celebridades nunca tiveram que lidar com tais condições. A sensação de privação é muito maior em relação a estes. Nosso senso de justiça - subjetivo e impreciso - usa as condições que os presos tinham antes, em liberdade, como parâmetro para julgar se a privação a que estão sendo submetidos na prisão é justa. Se o preso era pobre e favelado, nosso senso de justiça nos diz que ele não saiu perdendo muito com a prisão. Já para quem estava acostumado a hotéis cinco estrelas e restaurantes de luxo, a diferença é extrema.
O problema desse enfoque é que acabamos debatendo o sujeito e não o objeto. Focamos na solução para aquela pessoa e não para aquele problema. Tão logo o preso-celebridade é solto, nos esquecemos que há ainda dezenas de milhares de presos submetidos a condições extremamente degradantes e sujeitos aos mais diversos riscos diariamente. O problema continua existindo, piorando mas esquecido, até que um novo preso-celebridade vá parar nas páginas polícias dos jornais e nos solidarizamos com sua condição particular.
Vale lembrar que se por um lado a prisão jamais deve humilhar o preso, por outro lado, nossa lei não determina tratamento distinto de presos ricos.